quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Vermeer pintor do cotidiano


A proibição, por parte da Reforma Protestante, de se pintar temas de caráter religioso acabou por desenvolver uma pluralidade de temas na pintura. Na Inglaterra se estabelecem principalmente o retrato e a pintura da paisagem; nos Países Baixos, a natureza morta e a “pintura de cotidiano”, por assim dizer, e que, neste sentido, começa com “Giovanni Arnolfini e sua esposa”, de Jan van Eyck. Entretanto, nos Países Baixos, pelo fato de durante um tempo este ter estado junto à espanha, havia ainda o cultivo da pintura histórica, como se nota plenamente em Rubens, e também em Rembrandt, embora este já comece a o câmbio pelo qual passa a pintura holandesa, o qual se completa com Vermeer. E, entre esses temas marginais à pintura histórica, tem-se que fazer algunas ressalvas. Comece-se pelo retrato, onde a figura humana é louvada, passe-se pela pintura de paisagem, e depois à natureza morta, cegando por fim à “pintura de cotidiano”, a qual abarca uma cena maior em vez de se encerrar em um objeto particular, e donde retorna a representação humana.
O retrato já era praticado na Roma antiga, como atestam alguns frescos de Pompéia. Entretanto, só minimamente é cultivado na Idade Média, apenas na medida em que se associava uma figura ante o sagrado à pessoa que encomendou o quadro – associação por que se quer é retratação de determinada pessoa. Apenas com o Renascimento e a ascensão da burguesia o retrato retorna a se desenvolver, assim como o auto-retrato, donde o maior exemplo talvez seja o de Dürer. No mais, os retratos se configuram como representações de riqueza, a exemplo do já referido quadro de van Eyck. Todavia, ainda há divisão de espaços temáticos com a pintura histórica. Eis o que não se passa na Inglaterra: livre dos temos históricos a pintura inglesa pode se dedicar exclusivamente ao retrato (Reynolds) e a pintura de paisagem (Constanble). É capital notar, no entanto, que os retratos feitos são de personalidades importantes, portanto, há que se inserir uma aura grandiosa, austera, graciosa, seja o que peça o caso, na figura retratada. Desta maneira, há um enaltecimento da figura humana. No tocante à pintura de paisagem é necessário ter em mente a noção de pinturesco, i. é, a condição de que nem todas as paisagens são dignas de serem pintadas – e donde vem a palavra pitoresco: ou seja, apenas determinadas paisagens são pintáveis; e aqui tem-se uma eleição valorativa acerca da natureza que chegará até o sublime de Turner. Assim sendo, embora a pintura inglesa não se baseie em um tema histórico relevante, acaba por representar ainda pessoas ou lugares dignos de importância e contemplação.
Algo diverso passa com os outros dois temas desenvolvidos na pintura holandesa, a saber, na natureza morta e na “pintura de cotidiano”. No primeiro tema, nada poderia ser mais insignificante para a representação pictórica do que a natureza morta, caso se siga com Schelling, Hegel ou Schopenhauer, por exemplo. Isto quer dizer: elegendo-se a figura humana como a mais excelsa para a representação artística, a pintura de temas inorgânicos ou com pouca vida será a mais distante da pretensão artística. Dizem não menos esses filósofos que na natureza morta o que faz com que esse tipo de pintura seja arte é somente a capacidade do artista, uma vez que o tema não pode significar nada e, portanto, não seria digno por si de ser pintado. Desta maneira, passando-se da pintura histórica religiosa da Idade Média à pintura de natureza morta na Holanda, passa-se do tema mais elevado ao mais banal. E, caso se queira estender a noção de Ortega y Gasset de intranscendência da arte, a qual o filósofo espanhol encontra na arte de vanguarda por esta se preocupar apenas com o pintar e não com o tema, e, mais, por negar representar os temas mais elevados, e, portanto, conceber-se como arte artística, pode-se encontrar traços genealógicos na pintura de natureza morta, a qual se constituiria arte única e exclusivamente por causa do artista, como colocavam os pensadores alemães. Assim, pode-se encontrar aqui o início da intranscendência da arte através da não representação de temas históricos, uma vez que a pintura histórica aí se dá como o supra-sumo da arte figurativa, contendo e abarcando em si todas as possibilidades de significações profundas.
Passe-se agora para o que foi chamado de “pintura de cotidiano” e que, começando com van Eyck, passando por Rembrandt em “Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp”, chega de maneira primorosa em Vermeer. O que se tem aqui é sem dúvida a representação da figura humana, a qual já foi quista com a finalidade da pintura (Schelling, Hegel, Schopenhauer). Acontece que neste ínterim a representação humana não se dá mais na pintura histórica, a mais excelsa para estes filósofos. O que se passa são as pessoas em seu fazer cotidiano, como a aula de anatomia de Rembrandt ou a aula de música de Vermeer, donde se pensa chamar corretamente essas obras de “pintura de cotidiano”. Assim, a significação do quadro não advém da importância da cena representada, de seu sentido profundo ou superior.
Quiçá aqui se possa pensar em Camus, quando este diz que qualquer atitude ante o absurdo é válida caso se mantenha a consciência naquele, ou seja, sem elidi-lo, donde se apreende que a atitude superior tem o mesmo valor ético-ontológico ante a fixação no mundo. Ademais, como já se falou em “Beckett: passatempo e prazer”, trata-se ou de ascender a atitude banal ou rebaixar a atitude superior, pois ambas são representadas artisticamente e exprimem beleza, portanto, crê-se que sua dignidade enquanto objeto representado está salvaguardada; e, ademais, caso se pense camusianamente, ambas são atitudes válidas ante o absurdo se não o elidi. E, do mesmo modo que no ensaio sobre Beckett, fique-se com a segunda opção: decaia-se a superioridade da atitude histórica superior.
Eis o que faz Vermeer: assumindo a decaída do sentido superior, dá as costas a este e volta-se para a pintura de cotidiano, como se vê em “Moça lendo uma carta à janela”. E, retomando-se Ortega, se não se pode encontrar em Vermeer toda a instranscendência e desumanização da arte, tampouco as obras do pintor de Delft têm que ver com o caráter melodramático que o filósofo espanhol vê naquele movimento romântico, o que só é possível com a pintura histórica. Ainda mais, pelo fato das pessoas representadas serem anônimas, a tentação de reconhecer ou se reconhecer na cena diminui drasticamente, o que colabora ainda mais para a fruição puramente artística da obra no sentido orteguiano para as vanguardas, ou seja, dada a desumanização da arte e a impossibilidade de empatia com esta, abre-se espaço para a pura fruição artística, i. é, ater-se ao que há de artístico e voltar-se as costas ao que tem de história, de humano. Nisso tudo, aqui se encontra a figura humana no prosaico, sem qualquer intenção de ascender, como em “A leiteira”. Basta o simples fazer cotidiano para que se possa extrair a beleza, o que se constitui um ganho fundamental para o desenvolvimento da pintura passando pelo Impressionismo e pelas vanguardas, donde a tentação da pintura histórica retornará.
Vermeer se configura assim o primeiro passo bem acabado para a futura intranscendência da arte; e, tudo isso por ser Vermeer o pintor do cotiadiano.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Rembrandt: a luz como instante pregnante.



Através da exposição de Rembrandt no Museo del Prado, (Rembrandt pintor de histórias), realizada de 15 de outubro de 2008 a 6 de janeiro de 2009, percebe-se matizes do pintor holandês quiçá distintos do que se pode pensar acerca dele. Talvez pelo conjunto exposto, no qual não se encontra as célebres “Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp” ou pela ênfase da curadoria em colocar Rembrandt como pintor de histórias, pouco se encontra do desenvolvimento ao cotidiano pelo qual passa a pintura holandesa depois de Rubens, mais notadamente no pintor motivo deste ensaio e também em Vermeer; e, somada a ausência da pintura cotidiana, tem-se a pouca atenção a famosa técnica de Rembrandt, qual seja, o claro-escuro. E, ao colocar-se isso, vai-se de encontro a Ortega y Gasset e a sua consideração acerca do claro-escurismo no desenvolvimento da pintura tátil em direção a pintura visual, que está no ensaio “Sobre o ponto de vista nas artes”:
“Pero he aquí que entre ellos (los cuerpos) se desliza un nuevo objeto dotado de un poder mágico que le permite, más aún, que le obliga a ser ubicuo y ocupar todo el lienzo sin necesidad de desalojar a los demás. Este objeto mágico es la luz. Es ella una y única en toda la composición. He aquí un principio de unidad que no es abstracto, sino real, una cosa entre las cosas, e no una idea ni un esquema. La unidad de iluminación o claroscuro impone un punto de vista único”
Assim, para o filósofo espanhol claro-escurismo se constitui na ante-câmara da pintura visual, ou do vazio, a qual fixa o ponto de vista do pintor, e que será levada a cabo por Velázquez. Ante-câmara pois ainda há o elogio à corporiedade e o passeio do olhar sobre a superfície do quadro, mesmo que esse passeio seja guiado pelos pontos luminosos que reclamam atenção, como fala Ortega y Gasset. E, nesse âmbito, o maior exemplo se dá com “Ronda noturna”. Agora bem, como este quadro não faz parte da referida mostra do Museo del Prado, percebe-se, desta feita, outros matizes na obra do referido pintor.
O que se apreende dessas obras expostas no Prado é uma certa particularidade dentro do claro-escrurismo. Têm-se, na maioria das vezes, construções pictóricas quase que completamente escuras, nas quais se revela um único ponto luminoso, que, se não é necessariamente o centro geométrico da cena representada, é o pólo de atenção da representação. Além do contraste entre o claro e o escuro, ou, neste tocante, entre o escuro e o claro, e a partir deste mesmo, tem-se o gradual contraste entre o tratamento das figuras que fazem parte da cena, o qual vai da mera sugestão através do esboço (nas regiões escuras) à perfeição plástica, a qual se encontra no foco luminoso do quadro. Assim, no esboço escuro e na perfeita retratação luminosa encontra-se, no cerne deste jogo, uma questão valorativa com relação à cena representada. E, como se verá, isso será o essencial na apreciação e apreensão destas obras de Rembrandt.
No entanto, antes se faça um parêntese para a inserção de um conceito relativo à construção de imagens. Trata-se da noção de instante pregnante que Jaques Aumont explora em “O olho interminável”. Ora, como se pode perceber no próprio conceito, instante pregnante será o instante grávido de um significado, de uma mensagem, para a compreensão da cena. Ressalta Aumont que a noção de instante pregnante é essencial para a construção da mise en scene da pintura – tome-se aqui toda a pintura que tem por tema relatos mitológicos, religiosos ou históricos. O que se passa é que, como a pintura é a arte da imagem parada, em contraposição com o cinema, o pintar, para que consiga atingir os fins os quais almeja, tem que construir uma mise en scene na qual o que pretende representar seja dado de uma única mirada, pois, a pintura, nesse caso, ao cortar o fluxo, estabelece o instante como pedra de toque onde se fundamenta. E, portanto, para que possa comunicar a mensagem que pretende tem que eleger um instante grávido de sentido, de significado, ou seja, trabalha com a noção de instante pregnante, no qual o significado a ser expressado advém dos já referidos temas. Posto isto, retorne-se a Rembrandt.
No desenvolvimento da pintura holandesa, que começa com Rembrandt e vai até Vermeer, a noção de instante pregnante não se faz muito necessária nas pinturas de cotidiano, uma vez que, embora ainda se trate de instante, esse não tem que carregar em si uma gravidez de significados, uma vez que o que se pretende representar é corriqueiro em sua pura manifestação de simplicidade – o que é levado a cabo definitivamente pelo pintor de Delft (isso em si já constitui tema para outro ensaio). Desta forma, no Rembrandt cotidiano (“Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp”), uma vez que não quer significar muito, o claro-escurismo cumpre a função encontrada por Ortega y Gasset, i. é, tem a plena liberdade para que a luz funcione como tema e elemento unificador da obra; a bem dizer, ela chega a ser o centro da preocupação do artista, como se poderá ver mais categoricamente no desenvolvimento cabal dessa idéia, que se dá no Impressionismo, onde, inclusive, a noção de instante grávido de significado será completamente escamoteada.
Contudo, volte-se à exposição do Museo del Prado, ao Rembrandt pintor de histórias. Como já foi exposto, ao se tratar de temas mitológicos e religiosos faz-se necessária a construção da mise en scene para que esta carregue o instante pregnante. Com Rembrandt não se passa de outra maneira. O que há de diferente entre ele e seus predecessores, inclusive Rubens, é o já referido claro-escurismo, que aqui, em vez de falar como uma técnica que tem fim em si mesma, aparece para melhor servir o artista no ato de engravidar o instante o qual representa. E, desta feita, ter-se-ão os já referidos contrastes dos pares escuro-esboço e luz-definição. O que Rembrandt faz é isolar o significado superior do quadro em um único foco luminoso e bem definido, ficando o resto da cena que não foi eleita como parte principal relegada à escuridão e ao esboço. Assim, o pintor holandês concentra a cena num determinado ponto e todo o seu redor se mostra como não digno de contemplação, e, por vezes, mesmo impossível de apreensão, já que tudo se mostra escuro e apenas esboçado. A não ser que o que se deva apreender seja justamente a escuridão e o caráter mal acabado que tal região do quadro merece. E eis aqui onde reside o viés valorativo no claro-escurismo, o qual se percebe da maneira mais bem acabada nas pinturas de tema bíblico, onde o foco luminoso sempre se concentrará onde estiver representado Jesus Cristo ou algum santo, enquanto que o espaço a seu redor, seja a multidão, a natureza ou a arquitetura, fica no obscurecimento. Para tanto, veja-se “A apresentação de Jesus no Templo”, “A mulher flagrada em adultério” e “Descanso da fuga ao Egito”, por exemplo. E, tendo-se em conta o caráter revelatório da religião cristã, e, mais ainda, a associação da revelação com a luz divina, então se encontra a maior manifestação da luz como elemento de valoração da construção da cena. Tem-e a eleição das figuras mais sagradas como dignas de luz, enquanto que a grande parte da representação no quadro permanece na escuridão. Talvez seja mais: só à poucas figuras da história merece-se conceder a luz, pois apenas essas podem carregar em si a plenitude de significados que a obra pretender passar. Fim das contas, tudo se passa como uma questão valorativa, e, neste tocante, absolutamente moral.
Eis porque em Rembrandt pode-se encarar a luz como o instante pregnante.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Outra canção do exílio

Não o há aqui
Nem tampouco lá
Algo como assim
Ter um sabiá

As mesmas estrelas
Ainda sem flor
Sempre eu e o bosque
Mesmo sem amor

O cismar contínuo
Que prazer gozar?
Não é condição
Ter o sabiá

Não importa a terra
Nela se fiar
O cismar contínuo
Que prazer gozar?
Não é condição
Ter o sabiá

Como não há Deus
Não preocupará
Não importa a terra
Em que se fiar
Não é condição
Ter o sabiá