sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov.

Não se imaginaria que do cinema russo, então soviético, pudesse se extrair, cerca de oitenta anos depois, algo como “Arca Russa”, de Aleksandr Sokúrov. Ora, vem a ser esse filme a negação completa do que é conhecido como montagem russa. Quiçá, esta película seja o extremo oposto do cinema pensado por Eisenstein, algo mais próximos às teorias de Bazin ou aos filmes de Robert Bresson. Ademais, essa dicotomia toca profundamente na questão do tratamento da realidade. A película de Sokúrov tem 97 minutos ininterruptos, durante os quais apresenta o Hermitage. Não há qualquer corte, e, desta maneira, a montagem é mínima, atendo-se apenas às questões de créditos. Eis o que vai de encontro com o cinema de Eisenstein e o aproxima de Bazin e Bresson, assim como da nouvelle vague, escola que nasce das reflexões daquele ensaísta do Cahiers du Cinemá.
Sokúrov apresenta três séculos de história russa utilizando-se, para isso, do Hermitage e de um personagem que vem do futuro e, por isto, pode apresentar tudo o que se passa fantasmagoricamente na película. E, mais capital, apresenta esses três séculos da história de seu país de maneira quase que imparcial. Eis também onde Sokúrov se aproxima de Bazin e Bresson e se distancia de Eisenstein: para o mestre da montagem soviética não se trata de filmar com imparcialidade, mas de incutir o sentimento preestabelecido no filme para que o espectador o absorva exatamente esse sentimento inserido na obra. E, para tanto, Eisenstein não se furta a mudar a história de seu país. Eis o motivo do uso da montagem dialética, a saber, para, com a manipulação da estrutura fílmica poder manipular as sensações do espectador. Montagem aqui não é técnica que envolve o público, como na montagem paralela de Griffith, mas um recurso ideológico para a educação do proletariado, como bem se percebe em “Outubro”, onde a própria história da Revolução Russa é alterada. Assim, a montagem em Eisenstein é ideológica e condutora do espectador.
O que se passa com Bazin e Bresson é exatamente o contrário: trata-se de usar a montagem o mínimo possível para que não se fuja da realidade ao abusar daquela. Desta maneira o que importa para estes franceses é a representação pura e simples do real, e, portanto, escamoteia-se a montagem que induz o espectador a sentimentos e leituras definidas de antemão; não se tem, então, a montagem ideológica, e isto devido a outra particularidade daqueles franceses, qual seja, o catolicismo. Ambos têm um sentimento religioso muito forte e isso também influi na concepção de cinema, pois, quando se trata de representar o real sem montagem, ou seja, o real como é, a intenção é que se pereba, no real, uma manifestação divina. O real, para ambos, é o espaço privilegiado donde pode se dar uma epifania. O cinema, então, é um médium para a apreensão de Deus, e, destarte, aproxima-se de Schopenhauer, enquanto que Eisenstein estaria mais perto de Aristóteles, uma vez que a catarse, para o estagirita, é ética, e, portanto, política. Voltando, uma vez que para Bazin e Bresson o divino pode ser manifestar no real, o cinema não pode montá-lo ao seu bel prazer, mas, apenas representá-lo, e fazer uso da montagem só quando necessário, pois, fim das contas, também é questão técnica, e o cinema só consegue se estabelecer devido a montagem, e, mesmo era impossível um filme sem cortes, como ainda é o caso de “Festim Diabólico”, de Hitchcock, como se verá mais adiante.
Ora, tampouco o que se passa com “Arca Russa” é esse tratamento do real como campo de manifestação divina. O que Sokúrov realiza é mais aquém, entretanto, mais complexo. Note-se que, ao escolher filmar a história russa a partir e dentro do Hermitage, o diretor faz a escolha de representar um passado apoteótico russo, e, apoteótico no sentido que esta palavra tem em relação às artes plásticas como insere Nietzsche em “A vontade de poder”. Assim sendo, nas artes apolíneas, e aqui somando-se à pintura e escultura tem-se a arquitetura. Faz-se necessário aqui lembrar que para o filósofo do martelo esta arte apoteótica seria necessariamente a arte apolínea, uma vez que fixa, mais do que qualquer outra, o seu objeto de representação. Entretanto, sendo o cinema movimento, ou, quiçá, mais propriamente fluxo, Sokúrov consegue imprimir essa qualidade de fluidez àquele passado apoteótico; dá à película, portanto, o seu quinhão de devir. E não é senão a noção de arte dionisíaca. Ainda mais pelo fato de não haver corte no filme, este se passa como uma dança contínua e, talvez não seja sem razão que a película se encerre com um baile, ou seja, com música e dança. Destarte, todo o filme se passa como um fluxo de momentos apoteóticos da história russa; um continuo fluir dionisíaco balizado por belezas apolíneas. E, não fosse o roteiro algo fantástico, todo o filme se ateria necessariamente ao real. Nesse sentido ele fracassa; não na aspiração de uma representação quase plena da realidade, mas no que tange à inserção do fantástico.

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“Festim Diabólico”, de Hitchcock se passa quase que exatamente como o filme de Sokúrov, a não ser por duas exceções: primeiro, por questões técnicas, o diretor inglês foi obrigado a fazer cortes, dada a duração do material de captação; contudo, Hitchcock efetua esses cortes de maneira que não se os perceba, mantendo, então, a noção de plano-seqüência; segundo, o filme, embora gire em torno de uma situação absurda, por assim dizer, não parte para o fantástico, i. é, não tem confusão de passad e presente como em “Arca Russa”; aqui pode-se afirmar que a duração da película é propriamente a duração da ação, uma vez que não se tem cortes temporais. Ou seja, toda a ação se passa no presente, sem flashback ou forward. E outra característica que acentua o fluxo da película é a ausência da preocupação plástica exacerbada. Ambas as películas, por fim, têm que encerrar o fluxo, dada a natureza própria da arte e do funcionamento do ato reflexivo humano, e, ademais, como ressalta Ortega y Gasset, por não se poder conhecer o começo e o fim da vida, uma vez que esta é contínuo executar-se. Há que se fazer um recorte para que se tenha uma representação artística, pois não se pode ter uma representação ad infinitum. O recorte de vida artístico funciona como o conceito filosófico: possibilidade fixa de apreender a realidade.

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Diferenças a parte, o que se apreende de ambos os filmes, de uma forma ou de outra, é a decisão de encarar a realidade com o fluxo, o devir que esta é, e não como se queira interpretá-la, direcioná-la, montá-la de acordo com parâmetros exacerbadamente racionais. A razão tem que trabalhar dentro da realidade e não fazer como que esta se adéqüe a si; ou seja, não distorcer a realidade para agradar os caprichos da razão. Trata-se, assim, nas duas películas, de fazer esforço para que, a partir dos meios que se tem, poder representar a realidade em seu devir constante, ainda que tenha que parar em certo ponto. O contrário faz Eisenstein: esforça a realidade para que esta atinja os fins da razão. A ditadura da razão pode seduzir que já é afeito a ditaduras. Mas, a quem apetece as coisas como são e estão, em seu desenvolvimento natural, e, portanto, real, faz da razão apenas meio de apreensão e instrumentalização desta.
Ademais, ambos os filmes demonstram a maneira mais bem acabada que se conhece para a representação que se conhece para a representação da realidade através de imagens: o plano-seqüência. A montagem russa está para ditadura assim como o plano-seqüência está para a liberdade.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Impressões de Salamanca

Camus e Benjamim falavam que a melhor maneira de se conhecer uma cidade é se perdendo nela. Isso desvela muito mais do que um romantismo em relação a cidade; antes de tudo marca uma diferença entre o estrangeiro, por assim dizer, e o turista. Este último, muito comodamente trabalha com o guia, seja uma pessoa, seja um papel. E, mais que uma orientação, o guia fornece um a priori, e este é o capital. Isto se dá ao se indicar para visitação os lugares propriamente turísticos, o que também mostra uma outra faceta do guiar-se predeterminado: a incapacidade de se conhecer a própria vida do lugar, cambiando estes para a contemplação dos costumes feitos para turistas, “macumbas para turista”. Assim, não se experiencia a própria vivência do lugar. Além de se perder é necessário ir aos lugares que os habitantes da cidade costumeiramente vão, para que, destarte, saiba-se o que se passa cotidianamente naquele lugar, escamoteando as possibilidades de deslumbramento, o qual pode funcionar como escape da realidade que se apresenta.
A questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorre-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas. Pode-se pensar que seja subjetivismo ou solipsismo, mas antes, seja questão de perspectiva. Fato é que não se pode reflexionar nada se não se tem um cais. Caso contrário fica-se no devir eterno, e, embora a realidade se dê mesmo dessa maneira, só se consegue trabalhá-la ao se fixar algo, mínimo que seja. Contudo, estabelecer a fixidez e apoditicidade de tudo acaba por negar por quase completamente o que se passe; é a tarefa do turista guiado, que trabalha segundo um a priori. Ora, por que um a priori? Ver-se-á quão perto da epistemologia tudo isso está.
O turista guiado tem um a priori porque o seu processo de conhecimento da realidade depende de algo que já está fora desta, embora tenha sido haurido daí. O que acontece é que tudo se passa como sem tivesse uma meta privilegiada e idealizada a qual deve-se chegar enquanto fim-em-si. E pensar que a realidade tem uma meta para tingir é demasiado: eis o que Nietzsche é contra: eis o que a teoria de eterno retorno nega. O que se passa com o turista guiado é um falseamento da realidade, uma vez que este parte da idealização daquela. Por mais que o movimento possa ser dialético, ao cabo pretende-se a realização de uma idealização, embora, para que se fixe esta dada idealização seja necessário um contato prematuro com a realidade. Não pode haver qualquer idéia que não seja um mínimo de extrato do real. A questão se coloca no grau de idealização que se faz da realidade e a seguinte graduação de balizamento que aquela influe sobre esta. Trata-se, como diria Quine, de “compromisso ontológico”. E, desta maneira, fique-se com o mínimo.
Portanto, em dentrimento do turista guiado fique-se com o estrangeiro. Este tampouco conhece a cidade, assim como o turista; quer dizer, conhece menos ainda, uma vez que o turista parte do pressuposto de um algo dado, de um a priori. Para o estrangeiro a experiência se dá unicamente a partir da realidade radical, i. é, o seu primeiro dado é a própria realidade enquanto ato que vai se executando, assim como ele. Ou seja, o real é a pedra de toque donde o estrangeiro irá construir o seu conhecimento acerca do incógnito. A situação é completamente oposta: de um lado se tem a construção do real a partir da idéia; do outro, tem-se a formulação de idéias a partir do real. Jogo de palavras a parte, a questão vai mais além, ou, antes, mantém-se mais aquém. Não se trata necessariamente de formulação de idéias a partir do real o que faz o estrangeiro. Pode-se e deve-se permanecer mais aquém. O que se faz necessário, e não poderia ser de outra forma, é a reflexão acerca do que se passa para que se fixe um dado preciso a partir do qual se mantenha a vida. Basta o simples forjar de um conceito, o que é, em sua raiz, possibilidade de manutenção da vida, com o que Nietzsche concorda. Mais do mesmo, é a aceitação do mínimo de compromisso ontológico para que se possa lidar com a vida de modo satisfatório, pois, mais cedo ou mais tarde se tratará de fixar algo da realidade, o pouco que seja, não necessariamente um conceito bem acabado, mas, fim das contas, dado o logos, é do que não se pode escapar.
Primórdios de tudo, pense-se que o único que está é a realidade efetiva, a realidade em ato. Apenas depois da reflexão da experiência é que se torna possível a criação de um conceito, uma idéia, mediante a linguagem. Bom, esse tempo imemoriável já se foi e não se pode recuar. Já se nasce com conceitos formados esperando pra ser aprendidos. E faz-se isso sem que se sinta até o espanto. Uma vez dado esse, é questão de honestidade ôntico-epistemológica que se estabeleça a realidade como paridora de tudo que advém, e não o contrário, i. é, pensar a idéia como grávida. Trata-se do instante pregnante, como fala Aumont acerca da pintura. Mais: acontece que todo instante é pregnante, a depender da perspectiva. A noção de um instante pregnante só se deve ao fato da condição de possibilidade da reflexão, que é a fixidez do fluxo. E, se a necessidade de fixidez é uma necessidade moral para a manutenção da vida, ater-se à realidade prioritariamente e o máximo possível é questão de honestidade ontológica.
Dado todo esse qüiproquó epistemológico, apreende-se que o posicionamento ético-ontológico que se mantém nos limites mais baixos, portanto, mais próximos da realidade efetiva, da realidade enquanto ato, é o deixar-se perder-se do estrangeiro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Modigliani escultor.


Modigliani foi o pintor trágico por excelência da Paris efervescente do início do século passado. E talvez essa tragicidade, ao mesmo tempo que gera mais aproximação em relação ao artista, pode contribuir para obscurecer aspectos de sua obra: é o que se passa no filme estrelado pó Andy Garcia. Deixe-se então de lado o mito, uma vez que ao se trata de ética, e parta-se para a sua obra. As primeiras pinturas de Modigliani pouco têm que ver com as quais o consagrará. Contudo, toda a sua produção, por mais que se divirja, cabe dentro do universo pictórico pós-impressionista. E fato é que o artista italiano não se enquadra em nenhum dos movimentos que esbanjavam naquela época; como ele, muitos outros, a exemplo de Soutine e Utrilo, amigos seus, bem como Chagall e Van Dogen, para citar alguns do que é conhecido como Escola de Paris: como esses artistas expatriados não aderiram a movimento algum, mas todos viviam em Paris, deu-se essa denominação. E, por lá viver, Modigliani acaba por sofrer algumas influências comuns entre os artistas da época, como é o caso da absorção da escultura africana recém-descoberta, a qual contribui necessariamente para o cubismo sintético. Contudo, como se verá, as demais influências do artista diferem das dos demais.
Modigliani carrega sempre consigo grande influência da arte italiana, uma vez que fora educado na Itália, e mais precisamente, na fruição das obras da antiga sede das belas artes. Entretanto, nas primeiras pinturas pouco se percebe isso, mas, antes, muito de pós-impressionismo, dado o ciclo no qual conviveu em seu país de origem. A guinada artística decisiva para o italiano se dá pelo conhecimento de Brancusi e sua escultura. Ao tomar contato com este, aquela abandona a pintura e passa a se dedicar à escultura, e aí se inserem os estudos das cariátides, as quais representam a primeira vinculação de Modigliani à tradição da antiguidade. Ademais, os seus desenhos de cariátides já revelam a dívida com Brancusi e com a escultura africana. No entanto, devido a problemas de saúde, Modigliani consegue suportar o pó extraído das pedras que esculpia, e, assim, tem que abandonar a escultura. E, uma vez deixada de lado essa forma artística, ele irá se dedicar novamente à pintura. Pode-se estranhar tratar de um Modigliani escultor quando o artista tão pouco produziu nesta ceara; e mesmo se tratará mais aqui de pintura. Acontece que apenas pelo contato com a escultura é que se dará o futuro Modigliani e toda a sua contribuição para a pintura.
O contato do artista italiano com Brancusi e a escultura negra, o que direcionava o seu próprio esculpir, é fundamental no tratamento do rosto na pintura, o qual advirá de suas cabeças de pedra. E, desta maneira, ter-se-ão os rostos alongados, os olhos em elipses, os narizes e bocas bem marcados. Contudo, isso é pouco para diferenciar Modigliani do cubismo ou do expressionismo, onde, por vezes, têm-se disposições faciais semelhantes; aqui entram em cena mais influências do artista as quais não foram aproveitadas pelos demais pintores na representação humana. Sim, pois, para “o nosso aristocrata” tratava-se quase que exclusivamente de pintar figuras humanas; e, neste sentido, ainda pode ser percebida outra diferença entre os “membros” da Escola de Paris em relação a seus contemporâneos. Assim, ainda se tem outra marca do esculpir na pintura de Modigliani, qual seja, a noção de volume, a qual será fundamental para os seus nus, os quais diferem bastante das representações de nus de seus contemporâneos justamente pelo volume que o artista italiano consegue imprimir a ele, sem mencionar na carnalidade que ele exalam, do que se falará mais tarde.
No percurso de seus estudos e influências italianas, Botticelli se estabelece como marca fundamental na concepção e estilização das figuras humanas daquele artista trágico. Notadamente “O nascimento da Vênus”, do pintor proto-renascentista é capital para a suavidade e sensualidade que Modigliani colocará em seus quadros. Não por acaso que ele era tratado como um “Botticelli moderno”. E o próprio Botticelli tem o seu que de modernidade ao alongar o pescoço e abaixar os ombros de sua Vênus para poder suavizá-la. E, assim, percebe-se de onde Modigliani extrai como seu estilo os pescoços longos e os ombros caídos, bem como o rosto ovalado e esticado, advindos tanto do pintor da Vênus como da escultura negra. Ademais, o diálogo de Modigliani com a tradição pictórica não pára aí, não se restringindo a arte italiana; tem-se ainda leituras de Goya, Ingres e Manet. Ou seja, a sua educação para o tratamento do corpo depende mais da tradição do que da efervescência das vanguardas.
Por fim, a última e decisiva influência de Modigliani é a escultura greco-romana, ou pelo menos o que se ficou dela, mais precisamente no que se refere ao olho. Exatamente o tratamento dispensado aos olhos pela escultura clássica antiga, i.é., a representação dos olhos sem pupila, mas como único contínuo, onde não se expressa nada, será decisivo utilizado pelo artista italiano. É bem verdade que, pelo menos na escultura grega tinha-se o uso de pedras coloridas para a representação do globo ocular. Conduto, essas peças se perderam e o que restou foram aquelas nas quais a superfície do olhar é tratada como uma única, contínua e vazia superfície, a qual não se sabe para onde olha. Excetuado-se a mudança da cor do rosto e do olho, é isso o que faz Modigliani ao pintar tudo aquilo que poderia ser considerado “olhar” com uma única cor, retomando aquela tradição escultórica na qual se dá o instante kierkegaardiano. Este, a saber, consiste na possibilidade de eternidade na temporalidade, e o filósofo dinamarquês encontra uma representação do instante naquele tipo de escultura, como se vê no “Conceito de angústia”. Assim, Modigliani devolve à arte a noção de instante, quiçá não pregnante, como fala Aumont a respeito da pintura clássica, mas, quem sabe, um instante de vazio, como se pode perceber em Hopper de maneira diferente. A própria condição de eternidade é quase que interente a arte; e aí, pode-se falar com Kierkegaard: é uma eternidade no temporal, ou, um efêmero eternizado.
A partir de tudo o que foi posto, Modigliani consegue resgatar duas noções para a arte de vanguarda as quais pareciam estarem perdidas. A primeira vem em negação a Ortega y Gasset e sua desumanização da arte: se cubista e expressionistas contribuíram para o tratamento da figura humana de maneira não humana, Modigliani, assim como alguns dos “membros” da Escola de Paris, começam por reconstituir as características humanas na pintura, por mais que ainda façam uso de algumas mesmas influências que aqueles artistas. A segunda terá que ver com o volume, suavidade e sensualidade que o artista italiano imprime em suas peças: Modigliani resgata a carnalidade perdida na pintura, e, aqui, tem-se que ser extremamente camusiano na exigência de um “suporte de carne” para a criação artística ou filosófica. Assim sendo, não se tem mais aqueles “criadores de irrealidades” dos quais falava Ortega y Gasset a despeito do cubismo e do expressionismo. E, se esses para o filósofo espanhol são artistas intrascendentes, com Modigliani desce-se um nível a mais na escala da imanência e chega-se a própria carnalidade, mais das vezes sensual. Ora, toda essa guinada pictórica feita por Modigliani só é possível quando da guinada do Modigliani escultor.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A propósito de “O Mistério de Picasso”, de Clouzot.


Como trata Ortega y Gasset em sua revisão da história da arte a partir do ponto de vista do pintor, os cubistas seriam “criadores de irrealidades”, uma vez que o ponto de vista vai se retraindo até romper a barreira ocular, chegando ao que o filósofo chama de intra-subjetivo. Isto fica posto no ensaio “Sobre o ponto de vista na arte”. No texto maduro e convergente de algumas idéias encontradas no referido ensaio, ou seja, em “A desumanização da arte”, o autor coloca que a arte jovem, a arte de vanguarda, é uma arte artística, uma arte para artistas, devido necessariamente a esse ponto de vista intra-subjetivo, o qual cria irrealidades. Contudo, veja-se se é isso o que se passa quando da apreciação do filme “O Mistério de Picasso”, de Henri-Georges Clouzot. Na referida película vê-se o artista espanhol em work in progress, como era de seu feitio se apresentar. Para tanto se fez necessária a utilização de material especial para que as obras pudessem ser capturadas pela câmera. Mas volte-se à questão a qual inicia o texto.
As obras apresentadas por Clouzot pouco têm que ver com o cubismo analítico, o qual se propunha a oferecer de uma só vez todos os lados de um objeto, daí a sua natureza de recorte e de composição de ontologias regionais, para citar um termo husserliano bastante aparentado. A exceção das pinturas em preto e branco, nas quais se pode perceber de uma só tacada a fronte e o perfil de um mesmo rosto. Tem-se, por seu turno, expressões do cubismo sintético, o qual parte tanto do problema principal da pintura de Cézanne quanto da escultura africana para a estilização da representação humana. E eis por que Ortega y Gasset trata a arte de vanguarda como desumana; ela pretende fugir de uma representação que pinte o homem como ele aparece, como se dá na realidade. Nesse sentido para ter razão o filósofo espanhol em falar de uma criação de irrealidades; no mínimo, uma arte que busca prescindir algo do real, até chegar à radicalização com a pintura abstrata. Entretanto, faça-se um parêntese e se volte ao filme.
Narra Clouzot o quão bom seria caso se pudesse apreender a criação de um Rimbaud ou de um Mozart. E é isso que ele pretende e mostra em seu filme, salientando que a pintura seria uma arte mais própria para tanto. Contudo, a noção decisiva para a análise sem a ser a do erro. Fala ainda o diretor que se poderá perceber esse olhar no escuro da branca tela a partir do qual o pintor constrói a sua obra. Chega quase a ser um leitura mais afeita à escultura, como se o ser pintado já residisse na virgem superfície; antes a pintura trabalha com a adição, em vez da subtração, como na escultura em mármore: desta feita, é mais próxima de Giacometti do que de Michelangelo. A possibilidade do erro, ainda mais na construção por adição, demonstra o caráter de devir da criação artística. Assim sendo, embora já se tenha em mente algo acabado o qual se quer produzir, a própria natureza da obra, por assim dizer, exige alterações no imaginado para que se alcance uma realização cabal. É fundamental quando Picasso de que está satisfeito ou insatisfeito com o que estava a fazer. Demonstra a própria fluidez do ato artístico enquanto atualização. Embora a obra acaba possa carregar uma noção de momento apoteótico, como trata Nietzsche, apolíneo em sua “necessidade” de assim o ser, apreende-se a noção de devir na própria criação. Esta, portanto, faz parte do real nisso em que, nos termos metafísicos, vem-a-ser. Ou seja, sendo o devir componente indiscutível do real, da natureza, tem-se, então, na fluidez da criação artística a sua pertinência e afirmação, até certo ponto, do real. Contudo, uma representação, seja ela artística ou não, nunca esgotará a vida, pois, para isso, seria necessário que ela tivesse e chegasse a um fim, o qual seria estabelecido. Tem-se, assim, do qual fala Camus como umas das possibilidades de se dar a arte.
Entretanto, perceba-se ainda outro momento do filme, qual seja, a última obra criada por Picasso. Nela, o artista espanhol começa pintando algo bastante diferente daquilo que deixará por final. E não se trata aqui da alteração de uma cor, uma luz, um efeito que viesse a calhar melhor na representação do ideado, o que faria parte do “erro”. A questão que se passa é a mudança na própria temática, do próprio representado que vai mudando seguidamente com progress of the work. Não vem nem a ser a mudança de uma representação clássica para uma cubista, como acontece na peça do touro chifrando o toureiro. É a mudança de uma mulher de biquíni na praia para um casal, e desta para uma mulher sozinha... Trata-se da fluidez, do devir permanente da obra, sempre se recriando até que... fenece. No devido caso, Picasso destruiu todas as obras que fez, e Omo que elas não permaneceram como aquele momento apoteótico referido outrora, como efêmero eternizado. À sua destruição encerrou o seu caminho no devir de ser.
Contudo, a destruição das obras fazia parte do contrato, quiçá para qualquer função em relação ao filme. Mais das vezes mantém-se a obra como o momento apoteótico, como efêmero eternizado, como... afirmação da vida a partir da criação artística. E, desta feita, estabelece-se não só o seu caráter de realidade, mas a sua própria manifestação e razão de ser advindas da realidade.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

"Elefante", de Gus van Sant.


Os fatos ocorridos em Columbine, através da lente de Gus van Sant, fornecem possibilidades de abordagens as quais não seriam possíveis se não fosse o estilo adotado pelo diretor, e o qual persiste em sua película seqüente, “Últimos Dias”, que trata dos dias finais de um astro do rock, remetendo necessariamente a Kurt Cobain. O fato é que em ambos os filmes van Sant se utiliza de um ritmo extremamente lento e silencioso, como fosse um discípulo de Antonioni ou de Visconti. Isso possibilita um distanciamento por parte do espectador, não permitindo a catarse, qual parecia ter seu último reduto no cinema. E justamente essa impossibilidade catártica oferece uma condição de epoché, por assim dizer, para que se analise a situação representada. Ainda nesta esteira, dada a economia do argumento do filme, van Sant parte para a representação das perspectivas dos envolvidos no acontecido. Assim, a escolha de mostrar o fato da maneira mais imparcial possível, sem buscar qualquer explicação que se baseasse num arremedo sociológico, o diretor a possibilidade de apresentar o ponto de vista individual de cada personagem.
Conhece-se a história; o que ela desvela quando passada para a tela por Gus van Sant são considerações acerca da vontade de afirmação ou negação de vida. Tratar-se-á então, aqui, do cerne da preocupação ética de Schopenhauer, notadamente por dois vieses: por um lado o assassinato seguido de suicídio, e, por outro, a questão do tédio.
A aporia principal da consideração ética de Schopenhauer é a incapacidade de realização plena da vontade, donde, satisfeito um desejo, advém logo outro que causará, mais ou menos, dor, até que venham a sua realização e o fugaz prazer proporcionado por este; e assim indefinidamente quando tratado das objetivações da Vontade. Para o filósofo esse é o irreconciliável essencial da vida, o qual se tem que afirmar ou negar. Isso estabelecido, o primeiro viés proposto se fundamente na ligeira passagem onde o autor comenta o assassinato de filhos por parte do pai e o seguido suicídio deste. A explicação se dá na percepção desse dilema da vida, por parte do pai, e o conseqüente desejo de poupar seus filhos dessas circunstâncias, levando-o ao infanticídio; e, dada a reflexão do pai a respeito do fato ocorrido, tem-se o seu suicídio. A partir dessa leitura, ter-se-ia a já referida percepção do dilema da vida e a decisão por parte dos assassinos de poupar seus colegas de tal sorte no evento de Columbine. Contudo, isso soaria muito altruísta, por assim dizer.
A questão do tédio é mais capital, tanto para Schopenhauer como aqui. Esse se estabelece quando da satisfação das vontades de um dado individuo e a seguinte incapacidade de se desejar mais alguma coisa. Pensar-se-ia que seria a resolução do dilema da vida. Contudo, para o filósofo, vivendo-se na continua sina da objetivação da Vontade, esse individuo que satisfez todas as suas vontades acaba por não mais gozar delas, uma vez que o prazer da realização de um desejo é fugaz; ou seja, não constante porque não construção – chegar-se-á a isto mais tarde. Desta feita, ainda hás o desejo de querer algo, sem que se saiba onde aplicar esta volição: instaura-se o tédio. Parece ser esse o caso de Columbine. Assim sendo, o que poderia ser condição para bem-aventurança ou eudaimonia não se realizada dada a não fruição do prazer obtido, engendrando assim o desejo de desejar para que se possa novamente gozar outra satisfação. Tem-se, portanto, a incapacidade de afirmação total da vida, donde então se abre a porta para a negação desta.
Contudo, faça-se antes uma distinção no referente caso. Ao tempo em que Schopenhauer coloca a Vontade como cega, ele também a põe dentro de uma unidade dinâmica, onde a negação da vontade de vida de um dado vivente é condição para afirmação da vontade de vida do outro que negou aquela. Isso se passa no livro que trata da filosofia da natureza. Entretanto, no livro destinado à ética, por se tratar nele do homem, o filósofo insere as noções de reflexão, bom, justo etc., neste tocante da negação de vida de um indivíduo para a posterior afirmação de outrem, ao mesmo tempo em que baliza essas ações a partir das noções inseridas. Desta feita, a afirmação da vontade só deve ir até onde não negar a vontade de outrem. E o que se passa em Columbine não é absolutamente o caso da necessidade de negação da vontade de outrem para afirmação da sua própria. E, ao cabo, os assassinos negam a si mesmos.
Ainda outra distinção: no livro dedicado à estética, Schopenhauer coloca o acesso ao conhecimento da coisa-em-si através da arte, quando entra em cena o puro sujeito do conhecer destituído de vontade. Ademais, seria a fruição estética uma contemplação desinteressada do objeto artístico. Donde, tanto o fazer artístico quanto o fruir estético, ambos calcado na noção de gênio, oferecem essa possibilidade. Assim sendo, pela noção de um sujeito sem vontade e de uma contemplação desinteressada abre-se a oportunidade de se fugir do julgo da vontade, do desejo, nem que seja uma fuga momentânea. Agora se lembre da cena em que um dos assassinos toca a Sonata ao luar, de Beethoven, ao piano: nem o próprio fazer artístico ou o seu fruir não são capazes de manter os dois jovens longe da necessidade de satisfação de uma vontade a qual não sabem desejar. Ou seja, a saída estética é negada; o tédio é total.
Por fim, a própria redenção, como posta no livro da ética, através da compaixão e abnegação uma vez compreendido o dilema da vida e a incapacidade e aceitação em não resolve-lo também é impossível para aqueles assassinos. Fixa-se o tédio absoluto, que engendra assassinatos os quais não são necessários para a afirmação da vontade de vida daqueles jovens, e, por fim, o suicídio, que também não resolve o problema da vida nas objetivações da Vontade. Tem-se, portanto, uma sociedade do tédio, a qual não sabe mais o que desejar quando as vontades são satisfeitas e que também não sabe gozar os prazeres que tem.
Agora, pense-se neste texto de Nietzsche, em A Vontade de Poder: “Outrora, com a moral, se pretendia conservar: mas ninguém agora quer mais conservar, pelo fato de que não há nada para conservar. Há, portanto, uma moral que busca: que busca dar-se um alvo”.
Permute-se a afirmação da vontade de vida por este “conservar” do filósofo dionisíaco. Primeiro tem-se as ações com o fim de se conservar. Contudo, quando a vida já está conservada, perde-se este fim e quer-se buscar um outro, sem bem saber qual. No fundo seja um problema teleológico. Quando o fim é alcançado não se sabe mas o que se faça senão a procura de outro fim. Remetendo-se a Aristóteles e sua ética teleológica, chegar-se-ia aqui à felicidade, ou eudaimonia. Contudo, o problema capital é que para o Estagirita a felicidade é uma construção, ato contínuo, o que não se demonstra no referente caso. E, enquanto construção, nunca se chega ao fim e depois o goza passivamente. E eis que para Aristóteles a felicidade se constitui no filosofar, ou seja, no sempre investigar, e, assim sendo, na contínua construção e fruição do fim em direção ao qual age. Aqui se apresenta uma nova noção determinante.
Enquanto filósofo parece claro que Aristóteles eleja o filosofar como culminância da felicidade. Contudo, se a noção de um fim se mostra complicada, dada a própria maneira como o mundo se apresenta (e tenha-se em mente o eterno retorno), quiçá um fim eticamente estendido a todos. Estabeleça-se que, enquanto sempre necessidade de satisfação, portanto, na medida em que se tem que viver sempre em construção de si, por si, aja-se continuamente e consiga-se fruir os pequenos prazeres, sem alvejar ou criar um fim que não existe.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A condição da arte em “A queda da casa de Usher”, de Jean Epstein.


Existem algumas diferenças entre o conto “The fall of the house of Usher”, de Edgar Allan Poe e a versão para cinema “La chute de la maison Usher”, de Jean Epstein. No primeiro o casal Usher é concebido por dois irmãos gêmeos; no segundo se trata de marido e mulher. A outra diferença é quanto à morte da personagem feminina. No conto de Poe não se sabe ao certo o que provoca o dito falecimento; no filme de Epstein há uma informação nesse sentido: a pintura. Ainda, enquanto no escritor norte-americano o tanto narrador-personagem quanto Roderick Usher passam tempos pintando, na película do diretor francês o primeiro já encontra o seu amigo a pintar avidamente o retrato da própria mulher. O primeiro veredicto, na película – e adiante se tratará apenas dela – que Roderick emite acerca do quadro de sua mulher p que “ela vive ali”. Fixe-se nisso. O segundo comentário por parte daquele que pinta é que sua mulher parece fenecer mais a cada pincelada que ele dá na pintura que a representa. Também se conserve isso.
A questão se passa como um Dorian Gray ás avessas: a mulher se degrada para que o seu retrato ganhe beleza, enquanto que no romance de Wilde se dá o contrário: para que o personagem mantenha a sua beleza faz-se necessário que o seu retrato se deteriore. Eis o leitmotiv da presente exposição, a saber, a relação entre arte e realidade, e em qual medida uma solapa a outra e, desta feita, qual posicionamento tomar ante tal dicotomia.
A primeira assertiva proferida por Roderick baseia-se justamente na segunda: ela só pode viver ali (na tela) porque a cada pincelada dada por ele a sua mulher chega mais perto da morte; ou seja, se esse algo real fenece, ele só poderá substituí-lo em sua representação. A questão capital é por que continuar a pintar se isso implica o desaparecimento da coisa propriamente dita? Lembre-se o artigo sobre Pasolini e a sua “Trilogia da Vida”, mais precisamente a pergunta com a qual se encerra “Decameron”: “Por que fazer arte se sonhar com ela é tão mais doce?” Assim sendo, por que fazer arte se esta nunca irá conseguir esgotar a própria vida, o próprio real, o próprio efetivo? A resposta que Pasolini fornece em “The Canterbury Tales” não interessa agora.
Estabeleça-se a problemática da arte e da efetividade (por assim dizer, esse mundo). É necessária esta terminologia. Comece-se pelo veredicto que possibilita o outro: a cada pincelada ela morre. Assim sendo: tanto mais a arte se estabelece mais ela impossibilita a manutenção do real (efetivo). Pense-se então em Platão: basicamente para o filósofo grego este mundo nada mais é do que aparência, a qual é cópia de uma Idéia que propriamente é, tem o seu ser, pelo fato de sempre existir, e de nunca participar do devir. Desta forma, sendo este mundo aparente cópia do mundo supra-sensível da Idéias, e, a arte sendo uma cópia do mundo aparente, como se estabelece no Livro III de “A República”, a arte não poderá ser o acesso privilegiado para a Idéia; ou contrário, este acesso será a investigação epistemológica, e, portanto, filosófica. Ressaltando ainda que o termo grego para arte equivale ao mesmo termo para técnica, esse raciocínio se estabeleceria ainda mais nas artes, por assim dizer, manuais (donde se entenda o privilégio da arte palavra, encontrado no Íon, uma vez que esta terá mais que ver com o pensamento, o qual, para o filósofo, é o diálogo da alma consigo mesma). Portanto, aqui, posta a arte tem-se a negação do que é.
No sentido contrário, pegue-se a outra assertiva de Roderick: “ela vive ali”. Ou seja, uma vez que a cada pincelada a personagem fenece, ela passa a viver na tela pintada, na sua representação, por tanto, o que corrobora e alargar a consideração de que, uma vez posta a arte, o real se esvai, perdendo, por assim dizer, o seu ser. Entretanto, aqui se insere uma guinada na maneira de se conceber a condição da arte. Desta feita temos a obra de arte como o lugar privilegiado onde reside o próprio ser do que é representado, uma vez que este “vive ali”. Por mais que soe estranho, isso se nos mostra através das concepções estéticas de Schopenhauer, a qual vem a ser diametralmente oposta a consideração platônica exposta acima. Para o filósofo alemão, o conhecimento que se pauta dentro do princípio de razão, baseado no tempo, no espaço e na causalidade, conhece apenas a relação das coisas, mas não estas mesmas; assim, o conhecimento a partir do princípio de razão apenas apreende o fenômeno, mas não a coisa-em-si. Falando de maneira platônica, aquele tem que ver com o conhecimento do que “vem a ser e nunca é”, não chegando a conhecer, portanto, o que sempre é. Dada essa aporia em sua teoria do conhecimento, Schopenhauer resolve o problema do conhecimento da coisa-em-si através da estética. Para tanto o filósofo de Frankfurt insere a noção de puro sujeito do conhecer destituído de vontade, que, através da excitação genial conhece as coisas mesmas, não seus fenômenos relacionados com outros. Ademais, note-se que aqui a obra de arte consiste em um medium facilitador para a apreensão da coisa-em-si. Destarte, tem-se aqui a arte como o lugar privilegiado onde se pode conhecer aquilo que em verdade sempre é, em sua idealidade (e conserve-se o sentido platônico de Idéia), em detrimento do conhecimento do que participa do devir, sendo este objeto de conhecimento do sujeito pautado no princípio de razão.
Isso posto, perceba-se a diferença cabal em Platão e Schopenhauer no que tange a importância epistemológica da razão e, ainda mais, na conceituação mesma da arte. É bem verdade que para ambos este mundo efetivo propriamente não tem o seu ser, mas apenas é fenômeno de uma manifestação outra, superior. Entretanto, o veredicto de Roderick só se sustenta se, por um lado pensar-se a arte como aniquilação do efetivo, assim sendo, platonicamente, e por outro, como superação ontológica desse mesmo efetivo posto em aniquilação. E qual dialética impossível efetivamente.
Verdade é que a arte nunca conseguirá esgotar o real, uma vez que esta nunca conseguirá, por mais realista que seja, representar todas as nuances que se passam na efetividade e, problema maior ainda, nunca dará conta da questão do fluxo, mesmo que essa arte seja o cinema. Mais cedo ou mais tarde uma descrição sempre cessa, e o mundo continua em seu devir. A arte, como bem lembra Camus, só poderá trabalhar com recortes de vida e, neste, dependendo do tratamento que dê, poderá esgotar mais ou menos o real. Contudo, uma abordagem ou um ponto de vista já é uma escolha castradora da multiplicidade de possibilidade que se oferece na efetividade. É, por assim dizer de maneira nietzscheana, perspectiva. E, por se tratar de Nietzsche, perceba-se o fragmento 298 de "A Vontade de Poder": “- Arte, conhecimento e moral são meios: em vez de reconhecer neles a intenção de incremento da vida, levaram-nos a uma relação de oposição com a vida, a “Deus”, - a algo assim como manifestações de um mundo superior, que desponta ocasionalmente por meio deste”. Donde se rechaça a concepção schopenhauriana desse lugar elevado que se dá à arte, que acaba por tratar de algo que não se pode auferir, uma vez que à coisa-em-si só se chega pela intuição desinteressada e a qual resulta numa experiência vazia, para a qual é necessária a formulação do conceito de gênio ao qual se tem que alçar, como fosse quase que uma graça; e o próprio instante genial também é uma experiência muda.
Portanto, prenda-se nisso: “reconhecer neles a intenção de incremento da vida”. Ou seja, perceber na arte, na criação, a pulsão da vontade de vida, ou de poder, para citar o termo nietzscheano. Donde se perceba que a própria criação artística já é ela mesma uma ação do mundo efetivo, e, portanto, tem o seu lugar na efetividade. Ademais, que o próprio objeto criado já é ele mesmo efetivo, portanto já faz parte do real. É ele mesmo, seja a representação de algo existente um pouco mais ou um pouco menos, ou seja ele uma criação dita abstrata (embora essa conserve ainda algo do mundo efetivo), já um objeto da realidade, que, uma vez criado tem sua existência dentre os demais objetos de consideração e representação no mundo efetivo.
Assim, o objeto da criação artística, uma vez produto de uma ação humana efetiva dada na realidade, neste mundo, tem o seu lugar aqui, tem sua condição ontológica salvaguardada, partindo do real, é verdade, mas pondo-se também à parte deste quando concluída a sua realização. É mais um outro dado do mundo efetivo, tendo neste a sua manifestação e expressão próprias.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hopper pintor do vazio: o penúltimo pintor visual


Antes de tudo esclareça-se o título, o qual parafraseia o capítulo “Godard pintor: o penúltimo artista”, de “O olho interminável” de Jaques Aumont, no qual o crítico francês trata da dificuldade de filmar no cinema depois de 1980; esta obra de Aumont será importante aqui, mas não neste tocante. Ainda nela o autor fala de uma tentação de se ler a história da pintura a partir da mudança da pintura tátil para a pintura visual. É o que faz Ortega y Gasset em “Sobre o ponto de vista nas artes”, por sua vez versando sobre a mudança entre o que chama de pintura próxima e pintura distante. E nesta leitura de câmbio pictórico é que se sustentará o presente texto para que se chegue ao pretendido.
Deste modo, Ortega y Gasset começa a sua leitura a partir do Quatrocento, o qual é eminentemente tátil, ou próximo – o afresco e retrato romanos, bem como a pintura bizantina e a Idade Medieval média não o serão, dada a impossibilidade da representação da terceira dimensão, ganho pictórico o qual se inicia com Giotto, Masaccio, Fra Angelico, entre outros, no referido período inicial tratado pelo filósofo espanhol. Mesmo assim, esses artistas pintavam cada objeto como se fosse único, da forma que cada representação se mantém próxima do observador, de maneira que todos os objetos pintados são táteis, i. é, tem em si tal corporiedade que pensa-se poder tocá-lo. Isso contribui para o passeio do olhar do expectador pela superfície da obra, o que acaba não lha concedendo unidade sistêmica.
No Cinquecento, por exemplo com Rafael, ganha-se em questão de univade da obra. Embora ela ainda seja tátil, a construção, ou o que Ortega y Gasset chama de arquitetura da obra, consegue impedir que o olhar vagueie pela superfície pintada, concedendo-lhe, assim, mais sobriedade. No entanto, maior ganho neste sentido obtém-se na perspectiva atmosférica de Leonardo e a vindoura noção de flou da obra, o que, se não concede uma unidade arquitetônica à pintura, acaba por suplantar a característica tátil de alguns dos objetos representados, e, assim, preparando uma pintura com características mais visuais e distantes, em contraposição ao caráter tátil e próximo.
Ainda para Ortega y Gasset a primeira forma puramente pictórica que concede unidade ao quadro consiste na técnica do claro-escuro: a unidade de leitura se dá pelo elemento da luz, onde os pontos luminosos da pintura fazem a leitura integral da obra por um viés puramente sensorial (visual) e não mais de ordem racional (como a perspectiva geométrica e a noção de arquitetura). Contudo, para o autor espanhol, isso é menos uma atitude de ponto de vista do pintor do que uma técnica unificadora. É um passo para o distanciamento da visão, mas ainda é possível o passear do olhar pelos pontos luminosos na superfície da pintura.
Um parêntese. Para Ortega y Gasset, e mesmo seja verdade, El Greco, neste sentido, consiste num retrocesso, pois sua pintura é eminentemente tátil, e sua possível modernidade se consistiria não mais do que a sua paleta, tão afeita à limitação de cor de alguns quadros cubistas, como bem nota Modigliani acerca destes. Por sua vez, Tintoretto ganha em profundidade, por mais que seja tátil, dado o uso inaudito que faz da perspectiva: por vezes acentuadíssimas, por vezes mais de uma numa mesma pintura, quando não ambos os princípios juntos. Contudo, pintor de transição, maneirista, não leva a cabo o câmbio.

A mudança da pintura próxima para a distante, ou ainda da pintura tátil para a visual se dá com Velázquez, como atesta Ortega y Gasset e corrobora Aumont. A qual se constitui na fixidez do olhar por parte do artista. Desta feita, fixando-se o olhar do pintor, os objetos a serem representado “vão em direção a este”, e não o contrário, de maneira que o olhar não passeará jamais. Distante porque os objetos já não estão mais próximos do observador, portanto, perdem o caráter tátil, que tem que ver com a pintura próxima. Assim, em vez da pintura distante ser tátil, ela é visual: não se tem a tentação de tocar os objetos pintados, apenas de pode vê-los. Velázquez se constitui na fixação do ponto de vista do pintor, e, portanto, do observador; representa o que o autor espanhol chama de pintura do oco. Acerca disso uma última consideração paradoxal: o ponto de vista distante é mais próximo do olho, dado o retraimento da retina (tenha em mente a clássica pose do artista na obra “As meninas”).
Adiante, essa mudança no olhar do pintor tem novo capítulo no impressionismo, onde a visão continua se aproximando do olho, chagando aqui a tocar o próprio globo ocular, como percebe Ortega y Gasset. Ainda segundo o filósofo espanhol, o que se passa na pintura impressionista é a pintura do próprio ver, do ato mesmo de enxergar. Assim sendo, não será uma pintura tátil, por mais que se percebam manchas de cor soltarem da tela. Acontece que, dada a preocupação de pintar a luz sob os objetos, até descaracterizá-los, acaba impossibilitando o caráter tátil possível da pintura. E, dada a contínua mudança do ponto de vista, desta vez chocando-se com o próprio olho,a pintura impressionista acaba por trazer todos os objetos representados a partir de sua luz para “fora” do quadro em direção ao observador, o que não concede o caráter visual à pintura impressionista, uma vez que não é possível a pintura de oco. Tem-se ainda no impressionismo a manutenção do flou e de certas características da perspectiva atmosférica, notadamente a questão de tonalidade em relação a presença do ar em torno do objeto representado. Assim, por vezes pode-se perceber uma característica tátil, por vezes visual, a depender da construção do quadro, mas nunca absolutamente: Manet, por exemplo, será mais tátil; Monet, por sua vez, mais visual. As paisagens de Van Gogh e Cézanne talvez sejam ambos, concentrando como nunca a questão de superfície e profundidade na pintura (não é por acaso que Merleau-Ponty encontra em Cézanne o leitmotiv para essas questões).
As vanguardas, de acordo ainda com Ortega y Gasset ultrapassam a barreira ocular e passam a pintar o que o filósofo espanhol chama de “intra-subjetivo”. Desta feita passa-se da pintura do objeto para o ponto de vista do sujeito, desta para a representação do próprio ato de ver até o interior do pintor. Diz ainda o autor que os pintores de vanguardas são “criadores de irrealidade”. Portanto, basta observar, visuais estas pinturas nunca serão, pois não há a centralização do ponto de vista do pintor. Ter-se-ia aqui algo mais que ver com perspectivismo, no sentido filosófico. Serão, quando se reconhecer algum vestígio de natureza, pinturas no máximo táteis.
Entretanto, Edward Hopper, pintor americano, consegue romper uma possível impossibilidade da pintura visual. Artista de difícil classificação, se é que há uma. Começa com preocupações impressionista, como atesta a fase européia, e a questão da luz sempre será importante em sua obra. Por vezes é considerado integrante da american scene, embora os pintores desse movimento se valham muito da ironia e Hopper vai muito além disso. Não é propriamente realista, uma vez que afirma, com Degas, o valor da memória e imaginação ao representar uma cena. E também alguns de seus “enquadramentos” ou “perspectivas” podem remeter ao pintor das bailarinas. Nunca poderá ser hiper-realista ou pop como serão Chuck Close, David Hockney ou Warhol, por mais que elementos caros a esses artistas estejam já em sua obra, como as propagandas.
A obra de Hopper se principia sempre contendo expressões da natureza e expressões da civilização lado a lado, como já atesta a fase européia. Contudo, quando o artista passa a pintar os temas americanos isso se acentua, e o primeiro grande motivo então passa a ser o limite entre natureza a civilização; e, no mais das vezes, é uma muda afirmação da civilização ante uma natureza que a circula e se mantém intransponível por vezes: sempre casas solitárias, linhas férreas o estradas. Como que representasse uma consciência ante o deserto, sendo a civilização a consciência e a natureza o intocado: a prostração ante o vazio em seu primeiro viés. Nesses temas Hopper por vezes é tátil, por vezes visual, tudo dependendo do ângulo, da perspectiva adotada.
Hopper chega aos quadros de civilização pura. Sempre com perspectivas inauditas, pouco aparece figuras humanas: quando aparecem mais de uma ,estão perdidas; quando apenas uma, esta está desolada. Ao cabo, as marcas da civilização se sobressaem ao próprio homem, apequenando-o. Dir-se-ia alienando-o, e eis mais outra característica da obra de Hopper: a alienação, ou melhor, o estranhamento do homem, tal é a situação na qual ele é colocado (não se pense no estranhamento no sentido marxista, em que o homem é estranhado da realização de sua essência enquanto trabalho: estranhamento de si consigo mesmo e logo mais se chegará à alteridade). Ademais, aqui o artista americano sempre será visual: nunca se poderá tocar nada, ou seja, trazer o objeto representado para si, a obra, por fim, mais perto de si: é o estranhamento do observador: não há catarse: outro viés do vazio.
Por fim, estabelecida a civilização, Hopper concebe grupos de pessoas, o que não pressupões qualquer comunicação entra elas; pelo contrário: não há qualquer manifestação entre as pessoas representadas dentro do quadro. Todos olham ou agem em direções diferentes: não há qualquer manifestação de relação, ligação entre elas; ou seja, não há amor, caso se fique mais uma vez com Ortega y Gasset, agora em “Meditações do Quixote”. Eis mais uma representação do vazio.
Contudo, o que possibilita a representação do vazio e a pintura visual em Hopper, por mais que a sua preocupação seja a luz, é a escolha da perspectiva. A perspectiva em Hopper é sempre inaudita, e, diga-se, tem muito mais que ver com enquadramento de cinema do que uma mise en scéne plástica clássica. Ademais, entre a dicotomia da pintura e do cinema, onde aquela se preocupa com a representação de um instante pregnante e esta com o fluxo do movimento da ação, por mais que a escolha do a ser filmado seja uma escolha de um fluxo pregnante, Hopper carrega esta idéia de instante grávido que fora perdido na pintura de vanguarda. Contudo, ao tomá-lo a partir de certas da perspectivas de cinema (geralmente planos gerais ou médios ou plongée), ele quebra a aura de significação latente do instante grávido de algo importante para torná-lo banal, e, assim, vazio. Os personagens sempre são vistos de maneira e não se comunicarem, o que quebra a “gravidez comunicativa” do instante. O instante pregnante de Hopper é o instante do vazio. E toda essa, agora sim, mise en scéne à moda moderna, a qual represente o vazio, só é possível através da pintura distante, da pintura visual. Dada a pintura tátil, haveria comunicação, se não entre os personagens, pelo menos com o observador, enquanto catarse. Mas essa não é possível graças ao tratamento alienante que paulatinamente Hopper vai executando, o que só é possível na pintura visual.
Hopper nunca reconciliará. Eis o penúltimo pintor visual: eis o pintor do vazio.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Marcel Duchamp: atividade e intranscendência


Em “A desumanização da arte”, Ortega y Gasset coloca que a arte jovem (neste tocante se refere ao cubismo e expressionismo) tem por primeira característica tratar o objeto a ser representado da maneira menos humana possível, e daí o título do ensaio. Ainda diz o filósofo espanhol que se trata de uma arte artística, uma vez que causava estranhamento ao público de então (o texto é de 1924), o qual ainda não tinha, digamos assim, uma educação visual para compreender ou assimilar aquela estética que se anunciava. Entretanto, das características dessas vanguardas a mais importante vem a ser a intranscendência desta arte, auferida através de um influência negativa da arte romântica, a qual pretendia solucionar o mundo através da fruição estética (neste sentido veja-se Schopenhauer, por exemplo). É bem verdade que, se ficarmos com Amy Dempsey, a partir de 1918, temos a busca de uma nova ordem e, portanto, uma vanguarda como o surrealismo não pode compartilhar deste valor intranscendente.
Mas volte-s algo antes e teremos a intranscendência na arte por excelência: o dadaísmo. Desde o seu batizado, ao se escolher um nome que nada quer significar, já se apreender o espírito deste movimento: eles aspiram a nada significar. Isto se percebe na poesia de recorte e colagem de jornal, por exemplo. Contudo, a grande expressão do movimento vem a ser o francês Marcel Duchamp e, mais especificamente o advento do ready made. Ora, ao estabelecer que um objeto já fabricado – como um mictório, o primeiro ready made – tem status artístico, Duchamp consegue erradicar toda e qualquer transcendência na arte: já não é mais uma arte que pretende revelar verdade, representar a natureza, ou, sequer, arte pela arte. É o próprio cheque desta. E mesmo isso seja sintomático, como se perceberá adiante. Nunca antes se pensou um rebaixamento tão grande em relação à arte. E também não seja por acaso que depois do Dada passa-se para a busca de uma nova ordem, busca da qual fizeram parte artistas dadaístas, os quais desembocaram no surrealismo. Contudo, examine-se anteriormente, e mais de perto o legado artístico de Duchamp para que, desta forma, encontra-se esse elogio da intranscendência na arte.
Pode-se dizer que, segundo algumas considerações filosóficas, a primeira grande afirmação da intranscendência da arte, em Duchamp, se dá no quadro cubo-futurista “Nu descendo a escada”, ao, não só o artista representar o fato pretendido de maneira pouco humana como, também, conseguir representar o devir como nunca dantes. Ora, vem a ser o devir a pura realidade constante do mundo, sem qualquer ordem superior que estabeleça uma unidade, uma fixidez. Percebe-se então, no referido quadro, a primeira representação integral do devir, do fluxo (sobre este ponto veja-se “O ‘Nu descendo a escada’, de Duchamp: o problema do fluxo na pintura”); e, desta feita, a primeira representação da intranscendência em Duchamp.
A seguir, têm-se as pinturas dos moedores e dos moldes metálicos e também a concepção da “Noiva”, os quais irão formar, em conjunto, “O grande vidro, ou, a Noiva despida por seus celibatários, mesmo”, onde, plasticamente, pois ainda se trata de pintura, a desumanização chega ao auge, pois representa figuras humanas sem qualquer traço humano, quase uma pura abstração: nenhum traço humano é concebido. E, quando se tem em mente que para a completude da obra (que durou cerca de dez anos) Duchamp fez uso de uma rachadura no vidro, devido a uma queda, o artista incorpora definitivamente o devir, ou melhor, o acaso, desta feita no próprio fazer artístico. Tem-se assim outro viés da intranscendência da arte.
E então Duchamp chega aos ready madies: um dos maiores passos para a intranscendência da arte. Como já foi explicitado anteriormente, aqui o artista francês rebaixa a arte ao ponto que, sequer a técnica se configura como fim em si ou condição necessária para a produção artística; e, desta feita, se desvela o pressuposto para a arte conceitual. Marca também o uso inaudito da técnica reprodutiva na arte: nem fotografia e nem cinema, mas, a apropriação de objetos industrializados tomados para o próprio questionamento e fazer artísticos. Outra faceta da intranscendência.
Estabelecido já Duchamp no epicentro artístico, este passa, então, a dedicar-se ao projeto dos museus-valise, os quais comportam reproduções menores de suas principais obras; e, atividade a qual o artista se dedicará daí em diante, uma vez que o trabalho a ser feito em relação ao questionamento e fazer artístico já fora terminado. Tem-se, então, mais uma utilização da reprodutibilidade técnica, desta feita concernente a reprodução em série, a qual castra definitivamente o conceito de aura, como expõe Walter Benjamim em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, e, portanto, escamoteando o valor de culto do objeto de fruição estética. Esta se configura uma quarta manifestação da intranscendência da arte no artista francês.
Após o advento do museu-valise, Duchamp pouco cria artisticamente. Pense-se que a função por ele estabelecida a si mesmo fora cumprida. Destarte, ele passa a se dedicar às reproduções dos museus-valise e, fora isto, quase abandona a arte para jogar xadrez. O que faz no âmbito artístico não ajuste em “O grande vidro”, além de produções esporádicas, das quais a mais importante vem a ser a instalação “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”; e também mencione-se a personagem travestida “Rose Selávy”, nas quais o artista antecipa as tendências contemporâneas. Nisso tudo ainda é possível enxergar mais um viés intranscendente da arte, o qual vem a ser a tomada de consciência de que a arte não é uma instancia superior a qualquer outra e que, assim sendo, a atividade artística não é mais ou menos importante do que as demais. Isso se pode perceber nas considerações que Albert Camus faz acerca da “Arte Absurda” em seu ensaio “O mito de Sísifo”. Assim, negado o valor superior e, por que não dizer? transcendental da arte, tem-se mais outra faceta da intranscendência da arte em Duchamp.
No mais, o que sempre parece subsistir em Duchamp é uma consciência da necessidade de certa atividade para a própria manutenção da consciência do que se passa.

Apêndice: em torno de “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”.

Caso se force ainda uma leitura em torno de “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”, pode-se perceber mais uma característica, talvez a última. Retome-se a idéia de quebra de culto, de Walter Benjamim, no já referido texto: a noção de quebra do valor de culto se dá pelo fato da reprodução técnica da obra, que tira o seu caráter de autenticidade e de aura, ao contrário do que acontece na fruição de um quadro dentro de um museu, quando se tem a possibilidade de culto de um objeto estético. Contudo, para a percepção da perda de culto da referida obra de Duchamp é preciso que se pense em outra forma de observação. A instalação se constitui num cômodo, onde está deitado o manequim de uma mulher despedida e com as pernas abertas, tendo ao fundo uma paisagem algo irreal, que contém o flou da paisagem às costas da Mona Lisa. Contudo, tal visão só é possível através de dois buracos que contém a porta a qual daria acesso a esse cômodo. Assim, o que o espectador faz é “espiar” a obra; ou, o espectador torna-se um voyeur. E é justamente essa característica de voyeurismo que impossibilita o valor de culto na referida obra. Destarte, tem-se a última expressão da intranscendência da arte em Marcel Duchamp.

sábado, 28 de junho de 2008

Acerca da Trilogia do Silêncio, de Ingmar Bergman.


A Trilogia do Silêncio, composta por Através de um espelho (1961), Luz de inverno (1962) e O silêncio (1963), talvez se constitua no eixo de mudança das preocupações temáticas do cineasta sueco. Sabe-se que, pelo menos desde O sétimo selo, as suas preocupações são de ordem metafísicas, notadamente a questão do fenecimento, da morte, e digressões entorno da natureza divina. E é justamente na referida trilogia que se tem a acentuação desses temas nas películas de Bergman, ainda que de forma meio imbricada e, pode-se dizer, com certa carência de linearidade.
Em Através de um espelho temos a história de uma família, especificadamente, um pai escritor, seu filho adolescente, sua filha doente e o marido desta. Dada a enfermidade da moça, castra-se a sexualidade do casal, a que o marido (vivido por Max von Sydow) tolera pacientemente. Entretanto, a enferma fica constantemente realizando jogos sexuais com seu irmão – e a cena em que este derrama um balde de leite não é despropositada. Assim, enquanto brinca sexualmente com seu irmão, rejeita o marido – e talvez não seja por acaso a escolha de Max von Sydow para o papel, uma vez que todos os personagens que este trabalhou com Bergman têm característica de sempre cumprir o seu dever; e ele cumpre o dever do marido negado e paciente com a doença de sua mulher.
E, no tocante à doença dela, o que o pai faz, como escritor que é, é justamente anotar, passo a passo, o progresso da enfermidade de sua filha. Ao saber disto, o seu genro procura entender o que se passa na cabeça de seu sogro que, como pai, pouco se preocupa com sua filha e todo o interesse vertido nela por ele é de ordem literária. A discussão entre os dois termina na negação de Deus por parte do pai. E, uma vez dada a negação de Deus, a aposta do pai para uma explicação e, talvez, mesmo uma justificativa, é o amor. Ao cabo da película, a filha, num momento de epifania, vê Deus na figura de uma aranha, e, logo mais, vai interna.
Em Luz de inverno a temática metafísica é abordada através do suicídio. Desta feita, o personagem de Max von Sydow, ao saber que a China tem a bomba nuclear chega, pode-se dizer, a constatação do absurdo da existência. Desta maneira o referido personagem vai a procura do pastor para ser consolado, por assim dizer. Acontece que o próprio pastor perdeu a fé, e, portanto, sua ajuda se mostra vazia: eis uma das formas nas quais de pode reconhecer o silêncio.
O personagem de Max von Sydow por fim comete suicídio, dada a impossibilidade de ajuda, mesmo comunicação entre si e o pastor. Ademais, este mesmo reconhece sua perca da fé ao dizer que Deus está silencioso: outro viés do mesmo tema. Ora, o pastor acreditava numa relação muito particular sua com Deus: um entendimento perfeito e abstrato o qual cai por terra dada a morte de sua mulher. Tudo se passa como se ante os desastres terrenos a divindade seja muda. Em adendo, cabe notar que este pastor acredita em um Deus-aranha, o que remete à epifania gozada pela personagem de Através de um espelho. O que vem a ser esse deus-aracnídeo pouco se sabe.
Ainda em Luz de inverno tem-se o conturbado relacionamento entre o pastor e uma professora local. Esta ama aquele, que a odeia. Assim sendo, estabelece-se uma relação amorosa que não dá em nada, fadada ao fracasso, o que já se poderia perceber na primeira película da trilogia. Portanto, mais uma vez o amor se mostra silencioso. Neste tocante é importante notar que a aversão a qual o pastor tem pela professora se inicia quando esta lhe mostra as chagas as quais possui. Ou seja, a qualquer aberração corpórea o amor pode se apagar. Destarte, a característica sublime e possivelmente redentora deste se mostra castrada por um simples evento carnal.
Já em O silêncio temos a radicalidade de todo o tema. Aqui, sequer os problemas metafísicos são colocados: parte-se do dado concreto das relações humanas e as preocupações acerca desta. Eis então a viravolta na temática de Bergman, a qual vai paulatinamente se deslocando da ordem metafísica para a ordem dos relacionamentos. Tem-se, desta feita, duas irmãs e o filho de uma delas, viajando de trem até que são obrigados a parar em uma cidade estranha. No próprio comboio já se percebe o distanciamento entre as duas irmãs e desta em relação à criança, que brinca sozinha no corredor.
Ao chegar à cidade estranha, da qual nada se conhece, nem mesmo a língua (e isso é capital), se instalam em um hotel, ocupando um aparelho com duas câmaras distintas e ligadas entre si. A criança sai em peregrinação solitária pelo hotel até que encontra um grupo de anões circenses, com os quais começa a se entreter, a manter relações amistosas. Contudo, sua mãe acaba por descobrir o seu paradeiro e, por fim, leva-o embora de sua satisfação lúdica. A criança dá banho em sua mãe e depois esta sai, deixando-a com a tia, que está doente. Dado um certo momento o serviço de quarto se apresente e a comunicação se mostra deficitária. Entretanto, depois, a criança consegue se entender parcialmente com o criado.
Enquanto isso, a mãe vai sozinha a um café, onde flerta com um rapaz e, depois disto, termina em um teatro, onde se vê voyeur de uma relação sexual a qual acontece a sua frente. Narra o fato a sua irmã e depois têm qualquer discussão. A mãe então parte para um encontro amoroso com um homem que havia conhecido na ocasião da ida ao café. O próprio ato sexual se mostra complicado, e, ao cabo deste, sua está à espreita, atrás da porta. No final do filme, a mãe parte com a criança, deixando sua irmã doente convalescendo aos cuidados de outrem. Esta entrega a seu sobrinho uma relação de palavras da língua estrangeira e suas respectivas traduções. Não por acaso ela é tradutora: eis a exposição que mesmo com o conhecimento de várias línguas a torre de Babel se estabelece. A comunicação ou é impossível ou é inútil, e, destarte, manifesta-se o silêncio.
Agora, um parêntese. Ortega y Gasset, partindo de Spinoza e seu amor intellectualis, define a filosofia com ciência do amor, em seu primeiro livro, Meditações do Quixote. Ainda, estabelece o filósofo espanhol que o amor é, digamos, esse desejo de construir relações entre as coisas; e, isso pode se dar tanto no âmbito intelectual, ao, em filosofia, querer-se construir relações entre coisas e fenômenos para poder explicá-los, como também, logicamente, no tocante humano, no que tem que ver com o homem e suas relações com os outros. O ódio, em contraposição, se dá pela não relação entre as coisas, entre as pessoas, portanto.
Estabelecida essa digressão filosófica e, dada a impossibilidade de resolução das questões metafísicas no âmbito divino, uma vez que Deus está silencioso, também se transparece como fracassada a aposta no amor, nas relações humanas como forma de sanar os problemas existenciais, uma vez que também a comunicação dos homens entre si se mostra inútil, deficitária, e, desta feita, castra-se a possibilidade de relação satisfatória entre eles, e, portanto, o sucesso do amor em responder essas questões. Mesmo o que subsiste demonstrado em toda a trilogia seja um ódio entre os personagens; ou seja, a impossibilidade de relação entre eles. Ao cabo de tudo, fica-se com um inconsolável solidão.

sábado, 14 de junho de 2008

Beckett: passatempo e prazer


O que se pode esperar e exigir da literatura depois dos desenvolvimentos pelos quais passou durante o começo do século XX e depois de duas Guerras Mundiais? Os movimentos literários, as questões estilísticas e temáticas de toda ordem parecem tem sido exauridas. Seria, por assim dizer, o mesmo problema enfrentado pelas artes plásticas depois do romantismo e de seu extremo oposto, o dadaísmo. Ou seja, como podem ainda se dar esses fazeres artísticos, humanos? E, talvez o que carregue mais aporia, o que há ainda para se dizer, na literatura, depois disso tudo e ainda, após Hiroshima e Nagazaki, quando, “a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”, para citar Adorno e Horkheimer. E é justamente nessa atmosfera pós-hecatombe que se situa a maior parte da produção de Samuel Beckett, notadamente a produção em língua francesa, quando o autor abandona a língua natal – o inglês –, para se livrar do extremo manejo que tinha desta, para escrever em francês, justamente para escrever com menos recursos, afinal, vive-se aí num mundo de “menos”. Ademais, caso segue-se na exuberância da língua inglesa, pouco poderia acrescentar ao legado de Joyce.
Notadamente, esse trabalho “com menos” é a marca de Backett. A escassez do quê dizer leva à escassez do como dizer. Assim, tem-se a pobreza do enredo e das palavras. Como não poderia deixar de ser, ausência total de sentido.
Os personagens beckettianos são quase todos eles, a partir desta fase, vagabundos (a não ser em Como é, onde não se tem sequer personagem, mas apenas uma “voz quaqua” que fala). Contudo, um certo tipo de vagabundo, sempre velho, decadente, aleijado, enfermos, às vezes sem poder andar, vegetativo, mas, ainda com um resquício de alta cultura européia, a qual percebemos em citações ligeiras em passagens banais, como essa referência a Aristóteles: “não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”.
E, assim como os personagens, as narrativas das quais fazem parte ou as quais narram – é comum, em Beckett, os personagens narrarem histórias dentro (logo ver-se-á isso ais detidamente), essas narrativas, portanto, também são pobres, aleijadas, por assim dizer, cambaleando sempre sob um substrato parco, o qual tenta sempre exaurir com seus recursos pobres, mas suficientes para manter o ato de narrar algo (não podemos falar propriamente de manutenção do fluxo ou da estrutura narrativa, uma vez que estas também são aleijadas, e acabam, por vezes, fenecendo). Assim, o que subsiste nas obras beckettianas é uma teimosia em narrar algo, mesmo que esse algo seja difícil de ser narrado, tanto pela precariedade do algo narrado quanto da linguagem narrativa. Inclusive, dada a impossibilidade do seguir-se narrando por causa da pobreza de enredo, o autor não se furta em multiplicá-lo para que, desta forma, possa continuar o ato narrativo: é o que se vê no capitulo final de Como é, intitulado Depois de Pim.
O que se extrai disso tudo é uma certa “necessidade” de narrar, de dizer algo, mesmo que esta tarefa seja difícil e, quiçá, impossível em sua completude; de qualquer forma, nunca se chegará a uma satisfação plena, e mesmo não é possível plenitude em Beckett: não há qualquer possibilidade de redenção. Uma empresa fadada ao fracasso, como o amor sartreano. Pode-se remeter esse ato teimoso e constante do narrar que não se completa a uma tarefa se Sísifo, e não seria errado pensar por este viés.
Portanto, estabelece-se assim a implicância de se repetir o ato narrativo, como se este fosse a única coisa a se fazer (di)ante (d)o mundo; para um escritor é bem possível que o sejam, mas, para os vagabundos beckettianos os quais são também narradores não é tão simples encontrar o apreço pela narração côo algo inerente a si. De qualquer forma, em ambos os casos, não se constitui em condição necessária. Então, qual seria o motivo? Nas novelas O expulso e O calmante, as quais integram o livro Novelas e em Malone morre, percebe-se esses vagabundos que contam histórias.
O personagem de O expulso termina dizendo “Não sei por que contei essa história. Poderia muito bem ter contado outra. Talvez outra hora poderei contar outra. Almas vivas verão que elas se parecem”. Nota-se, destarte, certo desprezo do personagem, e por que não dizer? do autor pelo fato narrado; parece mesmo que o que mais importa é o ato de narrar. Em O calmante, diz o vagabundo: “Vou portanto me contar uma história, vou portanto tentar me contar uma história, para tentar me acalmar”. Tem-se aqui outro adendo no que tange a questão da linguagem e narração: o personagem propõe a contar uma história para SI, ou pelo menos tentar; ou seja, não temos aqui qualquer intenção por trás do “contar a história”, e esta servirá pura e simplesmente para entretê-lo, por assim dizer, ou, como se lê no texto, acalmá-lo; destarte, o que importa para o personagem é narrar e narrar para si, mesmo que não consiga. Já em Malone morre, diz Malone: “Acho que vou ser capaz de me contar quatro histórias, cada uma com um tema diferente. Uma sobre um homem, outra sobre uma mulher, uma terceira sobre uma coisa e, por fim, uma sobra um animal, uma ave provavelmente”. Assim, enquanto o personagem espera a morte, ele vai contar, também para si, algumas histórias ou pelo menos pretende; como se verá, essa tentativa se acabará com a própria impossibilidade narrativa, seja por causa da linguagem, da estrutura, de quem narra etc. Contudo, sempre se quer narrar, e isso é o capital.
Também nas obras teatrais persiste esse ranço de teimosia do contar, do dizer.é o que fazem Didi e Gogo enquanto esperam Godot; ou ao que se dedica Hamm, em Fim de partida, ao contar sempre a mesma história, cada vez pior, à Clov, a qual vem a ser a própria história de como os dois se encontraram; ou ainda a mesma piada que Nagg conta a Nell, enquanto eles estão em latas de lixo, 6ainda que não se lembre da anedota. Num mundo pós-apocalíptico, num day before, como fala Paulo Leminski a respeito do universo beckettiano, enquanto não fazem nada, esperando a hora da papa, do remédio, ou que o mar engula tudo. Desta forma, percebe-se uma concepção nada pretenciosa acerca da narrativa de uma história: esta serve, muito simplesmente para passar o tempo. Literatura, aqui, é passatempo.
Não se pense de forma depreciativa: passa tempo como o que se tem a fazer enquanto se espera o fim; atitude esta que mantém a consciência fixa no mundo, e não alhures. E, dada a impossibilidade de qualquer redenção ou resolução, trata-se, portanto, de uma atitude ascética às avessas. O anti-ascético permanece no mundo através de jogo lúdico, não no sentido schilleriano, mas no sentido mesmo da brincadeira, e por vezes Beckett expressa isso em Malone morre, quando Malone chama o seu viver e o seu contar história de “brincar”. Desta forma, a literatura, o narrar, é a pedra que esses Sísifos-vagabundos carregam, sabendo que ela sempre irá rolar abaixo, e que sempre irar-se-á nova tentativa. E mesmo seja essa a própria tarefa de Beckett. É inevitável pensar em Sísifo como a figura absurda par excelance.
Então, narra-se não por haver algo digno de narração, ou porque os instrumentos para esta possam ser fins em si, mas, sim, por uma estranha necessidade que persiste e à qual tem-se que dar vazão; e a necessidade não é de se comunicar com outrem, uma vez que os personagens contam histórias para SI, e também dado o fracasso de se estabelecer a comunicação. A necessidade é de passar o tempo, até que ele nos passe. E, posto tudo isso, há ainda outro viés desse querer narrar: o prazer.
Pode-se perceber esse outro matiz quando Malone, no começo do livro, diz “Elas [as histórias] vão me dar prazer, algum prazer”. Desta feita, além de fazer passar o tempo, o narrar de uma história pode gerar algum prazer. E, estabelecendo-se com Epicuro e Hume (para citar uns), que a vida consiste em aumentar o prazer e diminuir a dor; ainda, dada as características sorumbáticas dos personagens beckettianos, pode-se exacerbar a possibilidade de o narrar uma história gerar prazer, uma vez que, assim como no passar o tempo, é a forma encontrada para dar prazer a SI. Cabe ainda notar que o sexo é quase sempre complicado ou impossível (quando não sado-masoquista, em Como é). O que aumenta ainda mais a leitura da literatura como fonte de prazer. Contudo, e isso também se dá com Malone, é possível sentir prazer chupando uma pedra; destarte, temos algo tão banal ao lado de algo possivelmente tão grandioso podendo acarretar a mesma sensação. Donde, ou eleva-se a consideração da pedra ou rebaixa-se o valor da literatura, da arte em geral, portanto. Fiquemos com a segunda opção, é mais salutar.
Posto tudo isso, não se infere que a arte é a instância superior que regozija o homem; é apenas uma maneira. E aqui essa prazer pode ser extraído porque a arte é decaída, dado tudo o que foi colocado. Parodiando André Breton ao final de Nadja:
A arte será DECADENTE ou não será arte.

sábado, 17 de maio de 2008

O deserto como representação do vazio: entorno de Antonioni.



Pretendeu-se primeiramente trata de The Passenger (Passageiro – profissão: repórter), filme de 1975, no qual o personagem vivido por Jack Nicholson chega ao auge do incômodo existencial contemporâneo. Contudo, ao pensar na seqüência primeira da película, que acaba por findar-se na solidão de Nicholson em um deserto, demonstrou-se inevitável voltar um pouco antes na obra do mestre italiano e remeter-se a Il Deserto Rosso (O Deserto Vermelho), estralado por Monica Vitti, no qual é possível fazer uma relação, em níveis diferentes, da associação entre deserto e vazio. Muito embora o filme de 1964 apresente personagens abastados de maneira extremamente lenta, e outro narre um thriller internacional, pode-se ver, em ambos, um matiz existencial.
No que toca O Deserto Vermelho, a referência consiste unicamente em relação ao título. Não se tem qualquer paisagem árida durante o filme. Primeiro uma indústria funcionando, e depois interiores; no máximo ruas quase vazias, mas, com o mínimo de presença humana para descaracterizar qualquer tomada a qual se poderia relacionar com um céu azul inclemente e uma areia infinita. Pelo contrário, céu cuidadosamente nublaco e tomadas nas quais a solidão absolutamente física não é possível.
Portanto, a ponte só se mostra possível quando de esquece a questão física e se passa para apreciação psíquica, humana ou existencial da personagem principal. Assim sendo, a questão do título se esclarece quanto a referência ai deserto, mas, não quando se pensa no vermelho, uma vez que essa cor não predomina no filme, e nem as metáforas e associações concernentes a esta cor são possíveis, uma vez que a personagem de Vitti sempre transparece uma indiferença ante tudo: eis um pouco do deserto...
Talvez o deserto, para Antonioni, seja como metáfora textual ou visual, queira significar o vazio contemporâneo. A personagem de Vitti não demonstra qualquer atenção em relação a seu marido e seu filho; chega quase a ser-lhe indiferente: de fato, ela tenta suicídio, o que se começa a se perceber quando o seu marido fala para um amigo que ela ficou internada; e quando esta mesma revela a esse amigo a tentativa de suicídio, passando-se por outra (uma companheira de quarto) para confessar o feito.
Fim das contas, eis o deserto explicado: o suicídio preferido dada a impossibilidade de amar o filho e o marido, ou seja: o vazio de uma vida que se seguiu até este ponto. Vermelho, quiçá, por representar as afecções das quais ela não é capaz. Tudo posto: deserto como representação do vazio da personagem. E mesmo qualquer oportunidade apaixonante para ela se manifesta de maneira complicada, quando da vez que come um afrodisíaco, mas é incapaz de demonstrar o desejo que possivelmente sente pelo amigo de seu marido. Ainda, quando de fato chega a se encontrar amorosamente com aquele, a relação se desvela complicada.
No mais, o filme encerra como termina: na paisagem desolada entorno da indústria: locação, quiçá, tão típica do neo-realismo italiano, a qual pode remeter a Il Grido (O Grito), de 1957, filme o qual se pode enquadrar naquela escola cinematográfica e onde já se encontra o tema capital do diretor: o vazio. Por mais que se queira pensar Antonioni um necessariamente anti-burguês, que preocupa em demonstrar o vazio desta esfera social, pode-se perceber que o diretor também vê esse sentimento no dito proletário, no homem que trabalha, como mostra a película de 1957. Inclusive, neste sentido, é capital lembrar que os seus protagonistas vão cada vez mais se tornando pessoas ligadas à arte ou cultura, talvez alguma intelectualidade, em detrimento dos burgueses de outrora que praticamente nada faziam além de festas. Note-se o fotógrafo de Blow-up (Depois daquele beijo), de 1966, o jornalista de Profissão: repórter (ao qual retornar-se-á) e o cineasta de Identificazione di unna Donna (Identificação de uma mulher), de 1982.
Contudo, voltando a O Deserto Vermlelho, delineia-se outra perspectiva do tratamento do vazio e do deserto, neste choque entre uma paisagem semivirgem que apenas penetrada pela referida indústria. Pode-se estabelecer uma relação entre homem e mundo, no sentido em que o homem quer dominar e explicar a natureza, mais isto acaba sendo também inútil: lembre-se de Camus, o deserto de consciência ante o absurdo. E, aqui também, nem o suicídio é resolução do problema, uma vez que este não é conseguido: tem-se a mesma apatia passada, embora ela não tenha sido demonstrada.
Posto isto, passa-se para o outro ponto, The Passenger, no qual Antonioni já não tem mais a sua musa, Monica Vitti, e passa a conceber protagonistas masculinos como o fizera em O Grito, por exemplo. Desta feita, tem-se Jack Nicholson, vivendo David Locke, jornalista inglês que faz uma reportagem na África. Nas primeiras seqüências vemos Nicholson indo em busca de qualquer coisa, a qual ele não encontra, e acabando por descambar em um deserto, sozinho com o seu carro atolado. Talvez a face do personagem na cena seja emblema do desespero ante a desolação, o vazio.
Dado este evento, Nicholson volta ao hotel e acaba por encontrar o seu vizinho de quarto, com o qual se parece fisicamente, morto, e, deste feita, decide assumir a identidade deste: feito o estelionato, enterra o morto, que oficialmente é ele mesmo e parte para a Inglaterra. Mantendo consigo a agenda do fisicamente morto, passa cumprir os compromissos deste e termina por desembarcar na Espanha, onde, estabelecidos alguns contatos, e, tendo conhecido uma moça (Maria Scheneider), e depois tomando conhecimento de que está sendo procurado, não como David Locke, mas com a nova identidade, foge com a personagem de Schneider, a qual reencontra num prédio de Gaudí. Cruzam paisagens indeterminadas enquanto o cerco vai se fechando entorno do personagem de Nicholson. Cena representativa do vazio deste é quando a personagem da Schneider pergunta o que ele irá fazer dali em diante e a resposta subseqüente: “garçon em Ibiza, escritor em Tanger, traficante de armas”, (o que realmente se tornou). À essas alternativas, ela comenta: “muito óbvio, muito romântico e muito improvável”.
Enfim, o que transparece no personagem de Nicholson é a indiferenca quanto a seu futuro, desde que não seja o que poderia se desenrolar caso ele se mantivesse na antiga ocupação. Tem-se então aqui a constatação da absurdidade, do vazio, que se tinha na “vida anterior” e a busca de uma solução para o que lhe consumia.
Viver sem precedentes pode ajudar, mas a consciência ante o absrudo da vida sempre se demonstra e a morte é inevitável. Aqui pode-se fazer uma relação com Sísifo: este morre e pede que sua mulher não cumpra as honras fúnebres e deste modo Sísifo pode perceber o que foi feito de sua memória e, ao mesmo tempo, ao lançar um engodo à Morte, retorna a viver na terra tão amada. Assim o é o personagem de Nicholson: em sua oficial morte reconhece o que se fará do que ele foi e, em adição, recobra o seu desejo de viver.
Entretanto, quando a polícia está em seu encalço, acaba por morrer, nas instalações de um hotel barato, no qual já estava a personagem de Schneider e onde chega, por fim, a polícia.
Em suma: dada as duas películas, vê-se que o suicídio não é a solução e que, por mais que se tenta burlar esta realidade única, ao cabo, a morte sempre se revela. E, mesmo assim, o vazio continua: eis o significado do longo plano-seqüência que encerra o filme em uma paisagem que nos remete a Giorgio de Chirico: a vida também continua incessantemente, assim como a contemplação do vazio na figura do dono do hotel que fuma o seu cigarro ao cair da noite.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O “Nu descendo a escada”, de Duchamp: o problema do fluxo na pintura.


A realidade é o que há. E o que há, há com fluxo. O devir é parte constituinte e inegável da realidade não só das coisas como também nossa. Portanto, ao se pretender falar da realidade, não como coisa em si, pois não há, mas como o que é, o que há e o que se dá e acontece, não podemos não podemos fazê-lo sem tratar do fluxo, do devir. Assim, depara-se a pintura com seu grande problema: como representar o fluxo da realidade? Como um suporte estático pode sustentar o devir de tudo?
O início da Renascença marca o início da preocupação com a realidade na pintura: os estudos de anatomia e da descoberta da perspectiva geométrica são os impulsionadores dos artistas neste sentido. Contudo, com todo esse ganho, a pintura não consegue captar o fluxo da realidade. Talvez o ganho da unidade (ou arquitetura) do quadro, como vemos em Rafael, empate mais ainda a representação do devir da natureza. Isso se mostra complicado quando de pensa na relação título e obra, ou seja: o que se diz representar e o que realmente está representado. Ora, na impossibilidade de pintar o fluxo, um quadro desta concepção nunca poderá ser chamado de “o nascimento do menino Jesus”, mas, no máximo, “o menino Jesus recém-nascido”, pois não temos de todo a representação de todo o processo do parto, mas apenas o resultado que se deu após este. E isto é o que se segue até o Impressionismo, por mais que Romantismo tenha dramaticidade e mais vigor na ação.
Por sua vez, o Impressionismo, ao eleger como seu único tema a luz, conseguirá algum avanço neste sentido: Montet, ao se preocupar em pintar a Catedral de Rouen em diferentes horas do dia, consegue, se nos debruçarmos sobre todo o conjunto, representar a mudança de luz, e, portanto, do tempo, sob e através da Catedral. Entretanto, tal feito só é possível se considerarmos todo o grupo de peças; e imagino que Monet não tenha pensado de forma diferente. No entanto, ainda assim, a representação do devir só é possível com várias pescas, e um único quadro é impotente em cumprir tal tarefa. Os demais impressionistas conseguem ganhar mais debilidade em relação ao Romantismo – Renoir e Degas, por exemplo.
No Pós-Impressionismo temos outro ganho nesta sentido: Van Gogh, por se turno, passa a pintar o vento, e talvez seja o único a fazê-lo. Assim temos um movimento mais dinâmico que acrescenta algo na representação do fluxo. A diferença entre Monetr e Van Gogh é que o primeiro representa o devir pelo tempo e o segundo pelo espaço – essas duas categorias tão complicadas na filosofia. Gauguin, Cézanne e Much são um atraso nesse tratamento. O movimento decadentista, a Art Nouveau mais ainda.
Com o modernismo ganhamos mais e, como veremos atingimos esse desejo. Mas o Fauvismo e o Expressionismo Alemão pouco têm que ver com isso. É através do Cubismo e do Futurismo, juntos, que temos uma expressão bem acabada da representação do fluxo. No entanto, é necessária ainda uma distinção.
É impossível abarcar toda a vida, toda a realidade, em uma obra de arte; por outro lado, também não se pode fugir absolutamente da natureza. Assim, qualquer realismo ou abstracionismo absolutos não são concebíveis. Para isso nos é muito cara a reflexão de Camus – a consideração desta em plenitude nunca se dera devido, justamente, ao devir: se a vida fosse estática, consideraríamos totalmente. Desta forma, a arte, toda e qualquer, só é possível enquanto recorte de vida.
Voltando às vanguardas, o Cubismo pouco ou nada tem que ver com o fluxo; antes, se preocupa em representar todas as facetas de um objeto: é a tentativa de demonstrar todas as perspectivas, o que se dá no Cubismo Analítico, nesta profunda relação com a fenomenologia husserliana no que diz respeito à composição de ontologias regionais, mas este é tema para outro local.
O Futurismo é a arte de vanguarda que trata do movimento par excelance. Contudo, pouco se vê de devir nas quadros de Giacomo Bala. É só na junção do Cubismo Analítico com o Futurismo que temos a expressão mais bem acabada do fluxo na pintura: o “Nu descendo a escada”, de Marcel Duchamp.
Duchamp, na referida obra, uma Cubismo Analítico e Futurismo – daí a divergência de opiniões – para compor uma perca que representa um corpo nu descendo uma escada. Primeiramente Duchamp elege um tema, ou seja, faz um recorte de vida, o que é puramente normal e foi feito por toda a tradição. O fato novo é que, dentro da eleição deste tema, ele representa o fluxo perfeitamente e de forma nunca dantes vista. Duchamp é anaílitico não com a coisa representada, mas com a ação que elege como tema de sua obra. Assim, não desdobra o corpo nu que pinta, mas a ação que esse corpo faz – pinta todos os estágios do “descer a escada”. É futurista enquanto elege o movimento com tema, mas ultrapassa o estático ao conseguir representar o fluxo, o devir da ação: e o faz ao pintar todos os movimentos de quem desce uma escada, de maneira seguida, não justaposta ou sobreposta; posta em seqüência, como realmente a ação acontece.
Duchamp faz o que se vê em um vídeo, no cinema. Contudo, a pintura é arte da fixidez: o que Duchamp faz é da natureza de toda a pintura, de toda a arte: eternizar o efêmero.

sábado, 5 de janeiro de 2008

O dia seguinte



O certo poderia ser ir deitar agora, porém, há ainda uma rememoração que persiste e que ia apenas derrocar em insônia, se o caso fosse seguir para a cama. Mesmo porque as semelhanças não só apenas nas acomodações, mas também nas sensações, no mínimo. Mas que é isso? Desta maneira já vai chegando ao final sem antes ter ao menos começado.

O fato é que não se consegue de fato dormir, haja vista o dia que, não atribulado, permanece ainda algo que pesado em uma cabeça cansada de várias coisas e que assim, vai recorrendo a algumas lembranças, algumas imagens; alguma tentativa de verbalização. E também fosse a situação em que não se conseguiria dormir sem um alterador de consciência, e talvez isto o seja. É bem verdade que se preferiria uma cerveja, mas essa não se tem. Então, passa-se a percorrer os dias ébrios vividos, a sós, em companhia, e nestes dividindo-se álcool, tabaco, cama. Também é fato que tanto os quartos como os quadros mudam e, assim, não se crê que se erra ao admirar apenas um, mesmo porque todas impressões externas acabam por se mesclar a este mesmo.
Aí se tem, portanto, um quarto denso, escuro, pequeno, mas suficiente para suportar tamanha situação, sim aqui não se vê sombra de outro suporte; é ele próprio, apresentando-se no que se faz necessário de sua apresentação, com essa mesa circular que demonstra-se ao canto esquerdo, quase que inteira e essa cama que poder ser para dois mas que agora acomoda apenas um belo corpo. À mesa, dois copos e duas garrafas, o que prova que tanto que tanto se bebeu em demasia como se bebeu em companhia. Na cama, apenas jaz um corpo, o que mostra que sempre se acaba sozinha. E, mesmo, como haveria de ser diferente? É muito tênue o que une duas pessoas, não dois corpos. Aqui, parece isso ter sido representado por duas garrafas de bebidas, e as ligações ébrias nem sempre são simpáticas. Nota-se ainda que um dos copos foi completamente esvaziado, enquanto o outro permanece ainda algo cheio. Ela não agüentou bebê-lo todo ao vê-lo partir depois do derradeiro gole? Ou ele não se preocupou em findar aquilo e tudo que lha restou foi apenas o último gole do copo que jaz vazio? Contudo, primeiramente, quem jaz é ela, flagrada por uma luz frontal, que tende levemente para a direita, a iluminar-lhe durante uma noite em que absolutamente não teve qualquer iluminação. Nem que seja porque esta não existe. A começar-se pelo que há de sombra, ela inicia-se d forma confusa e, talvez, isso seja o que lhe acarreta todo o resto de seu acaso. Confusamente vai subindo e delineando-se. Mas, às vezes alto, o delinear é bastante ambíguo. Mas há então duas formas de se referir, dois significados, e tem-se que optar por um nesta questão de lógica. Volte-se ao primeiro. Surge já então um joelho eriçado, em pé, que se mantém não se sabe como nem por que, assim como ela... Mais uma vez! Talvez seja inevitável... O outro se deixa cair, escondidamente arqueado, acabado, levado à tona, caído por terra. Segue-se então através de um vácuo sob o pano, as insinuações de suas coxas que outrora foram tão receptivas e que mesmo agora fossem, se tivesse chegado a situação para tanto. Chega-se então ao fim de uma saia que permanece hermeticamente fechada, iluminada a uma altura despudorada e que o seria, mas que agora tem com a luz uma fonte errada de êxtase e este apenas parta quem observa. E, antes de mais nada, quem observa? Seria o caso de um dos bebedores de um daqueles copos que, ainda esvaziado, que se vê duro enquanto a contempla? Ou o outro copo,desistindo já de tudo e mantendo-se apenas a fitar e perder-se ali onde talvez tenha querido estar. Ou teria mesmo e ainda assim deixa-se ficar no quarto, observando sem nem bem saber porquê, de forma que acaba apor afligir-lhe ainda mais? As constantes elucubrações vão se perdendo e se negando pelo caminho, enquanto se sua, sem saber direito se é por causa da bebida, por causa unicamente de si, dela. É preciso parar e voltar a ocupar-se inteiramente dela, mesmo que seja desta forma, e não de outra, maneira a qual, por algum motivo, foi rechaçada. Suba-se mais um pouco em direção ao corpo deitado, ou seja, vá-se mais para a direita. Uma frágil blusa se envolve num corpo que esconde o braço direito, jazido ao seu lado, e já agora sem função alguma, sem copo em mão ou qualquer coisa que lhe pudesse servir de ocupação. Mais uma vez uma frágil blusa branca, a envolver, mas não esconder absolutamente a parte superior do corpo. Brilhando ainda sob a mesma luz de sempre, cobre insinuantemente o seio esquerdo, que jaz relaxado e quiçá levemente excitado; desnudando parcialmente o seio direito, talvez sabiamente ocultando-lhe a parte mais suculenta. Descendo então numa fenda que quase permite adivinhar o ventre tão afagador e subindo novamente, despindo completamente o ombro direito e cobrindo ainda o esquerdo, ambos entregues talvez não só ao estado de sonolência, mas também a tudo que pudesse ou poderia vir e a tudo que ainda deseja. Um braço estatelado, algo ainda tenso, caindo e abandonando-se no além-cama. Ao fim, uma mão que segura algo imaginário, ou que anseia por ter algo consigo e mantendo-se assim fechada que é a melhor maneira de curar-se não se sabe de que doença. Subindo-se ainda mais, um rosto belo, calmo e abandonado. A boca carnuda e sensual tento ênfase no lábio superior. O nariz apenas sabiamente sugerido. Os olhos fechados, formando assim as pálpebras cerradas e as sobrancelhas fechadas arqueadas, um estranho círculo que dá uma incerta sensação de calma e movimento eterno que não leva a lugar algum. Uma testa limpa até que se desemboca em longos cabelos pretos. Cabelos pretos que se eriçam e se jogam ao longo da pequena extensão da cama que ocupam até se precipitarem em direção ao chão, como se quisessem responder que sim, que tudo caiu por terra, tudo ruiu, e mesmo esse “além” não é solução para coisa alguma, mesmo porque não há solução, chegando já a se confundir com as últimas sombras que se oferecem, perdendo-se no escuro, como só poderia ser. A cama, em ser principal, engorda-se talvez com a intenção de acomodar-lhe a apoiar-lhe um pouco que seja. Ou talvez seria o contrário? Ela mesma vai se esvaindo para não suportar semelhante fardo, que já tem dono? Ah, que quarto! Que quadro! Mas, como já foi dito anteriormente, tanto os quartos como os quadros mudam. Assim também o são as impressões e, talvez, estas mais que tudo. Se, ao contrário, tudo o que se devaneou não aconteceu absolutamente? Se foi tudo imaginação ébria de mente vazia de sentido e completa de álcool? Se, quem fala é o mesmo que olha? Então, este, notadamente, permaneceu. Mesmo, sim, ainda se pode confiar em tais devaneios. Mas, se quem ficou e observa apenas imaginou isso para passar o tempo enquanto mantém-se sentado, fitando-a, sem coragem de ir-se embora? E enfiou-lhe a mão esquerda dentro da branca blusa frágil e tocou o seio direito? E, cheio de desejo, ultrapassou a pesada saia e conseguiu por fim extasiar ambos e ela penas jaz, relaxada, descansada, ainda de pernas abertas, como se sentisse incapaz de fechá-las, por ainda sentir-se preenchida? Mas, por outro lado, se, contudo não conseguiu absolutamente nada? A invasão da mesma frágil blusa branca foi inútil? Se o levantar da perna e da saia foi impotente? Se, ao jogá-la na cama, ela simplesmente esqueceu da situação, de si, de tudo, e acabou por abandonar-se num estado de sonolência? E, por fim, se mantém-se ainda a observar obstinadamente, é porque ainda deseja e espera persistentemente algo, enquanto se ocupa com esses devaneios, essas imaginações, suposições, elucubrações. Ora, já se perde novamente sem conseguir retornar ao fio da meada. Talvez, além das relações ébrias não serem nem sempre simpáticas, elas sejam sempre confusas, de forma que se chega em absolutamente nada! Mesmo o caso fosse ir dormir. Mas também a isso não se decide, sem saber igualmente como viria a ser. Fato é que temporariamente já é dia seguinte e assim para ela, que se apagou. Contudo, a solução mesmo só venha quando for seguinte também para quem observa. Não que o dia seguinte venha trazer solução. Mas os devaneios não serão aceitos e, no colchão desfeito, todos algo refeitos, aos pleitos dê-se jeito.