terça-feira, 19 de junho de 2007

Ser e aparência em Persona, de Bergman.


Persona, filme de Ingmar Bergman, de 1966, nos transparece, ao seu longo, a questão, tão cara à filosofia, do ser e da aparência, ou, se quisermos, de ser e aparecer.
Elizabet Vogler (Liv Ullmann) é uma atriz que, durante uma montagem teatral de Electra, acaba por emudecer no palco e, a partir daí, passa a viver em silêncio e com extrema economia de atos. Nenhuma doença psicológica é diagnosticada pela médica do hospital no qual está internada. Contudo, o veredicto desta é implacável e nos mostra o fio condutor desta leitura:

“Pensa que não entendo? O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar alertar em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você realmente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de finalmente ser exposta. Ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso uma careta. Cometer suicídio? Nem pensar. Você não faz coisas deste gênero. Mas pode se recusar a se mover e ficar em silencio. Então, pelo menos, não está mentindo. Você pode se fechar, se fechar pra o mundo. Então, não tem que interpretar papéis, fazer caras, gestos falsos. Acreditaria que sim, mas a realidade é diabólica. Seu esconderijo não é a prova d’água. A vida engana em todos os aspectos. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou não, se é sincera ou mentirosa. Isso só é importante no teatro. Talvez nem nele. Entendo porque não fala, porque não se movimenta. Sua apatia se tornou um papel fantástico. Entendo e admiro você. Acho que deveria representar esse papel até o fim, até que não seja mais interessante. Então pode esquecer como esquece seus papéis.”

Assim, o problema central de Elizabet Vogler e, adiante, do filme, passa a girar entorno da questão entre ser e aparecer.
Ora, se antes, Nietzsche havia colocado as artes plásticas como a Arte Apolínea e, assim, da aparência, em seu Nascimento da Tragédia, Bergman nos mostra aqui o ator com o artista da Aparência, uma vez que tudo o que vive não tem o seu próprio ser, mas apenas consegue este status às custas do ser do ator. Podemos, se quisermos, estabelecer a aparência do personagem como uma forma de se dar o sendo ator. Destarte, o personagem, aqui encarado como não-verdade, com seus gestos e falas falsas, seria uma das formas de se dar do ator, e este sim, o ser “verdadeiro”. Se pararmos agora para refletir que isso se passa em um filme, teremos ainda problemas quiçá maiores com a metalinguagem. Contudo, nos atenhamos à outra questão.
O anseio de Elizabet Vogler é, portanto, deixar de parecer (aparecer) e passar a ser. Para isto, encontra como fórmula o silêncio – tema já tão cara na obra bergmaniana. Uma vez instaurado o silêncio, não haverá mais falas e atos falsos que levam à aparência. A concepção da natureza do ator aqui é tal que, mesmo quando não está representando no palco, está se pensando de forma dramática o tempo todo e, portanto, acaba-se representando também fora dos palcos, o que ocorre com quase todos a quase todos os momentos. A solução, portanto, é manter o silêncio não só no palco, como já havia feito, mas na vida “real”, por assim dizer. Podemos, desta maneira, estender o silêncio como sinônimo de ser, ou, pelo menos, como condição de possibilidade.

Continuado o curso do filme, a enfermeira Alma (Bibi Andersson) é encarregada de cuidar da atriz e, como esta não apresenta qualquer caso clínico, elas partem para repousar numa casa de praia na costa sueca. Ao chegar lá, Elizabet Vogler permanece calada e a enfermeira Alma passa a narrar quase que compulsivamente a sua vida, como uma forma de quebrar o silêncio ressonante da atriz e, desta forma, manter o caráter de aparência na casa. Assim, enquanto Elizabet mantém o seu silêncio tentando salvaguardar o seu ser, Alma permanece falando copiosamente e, portanto, dando lugar à sua aparência, a qual serve de material de análise para a atriz.

É só quando Alma descobre que Elizabet está analisando-a que a primeira decide se colocar em pé de igualdade com a última. Isto ocorre na segunda metade do filme, demarcada pela película queimada e que transparece justamente essa mudança de direção. Desta forma, Alma deixa de contar os seus casos e passa, à sua maneira, a ser agressiva como crê que Elizabet o é. Chega a clamar, inclusive, por uma palavra da atriz, como que para trazer a tona a aparência, porém, inutilmente.
Justamente neste ponto do filme é que começamos a nos perder na fronteira que divide uma mulher da outra e já não se sabe de muita coisa. As dúvidas clássicas que assaltam a película: quem está insana? serão as duas a mesma mulher? seria uma personagem da outra? O próprio título nos sugere algo nesta direção.

No entando, é no momento em que mais se fala no filme que parece transparecer o seu teor em relação às duas mulheres. Refiro-me à seqüência em que Bibi Andersson fala duas vezes o mesmo monólogo (ou a mesma análise ou veredicto), sendo a primeira vez em uma tomada de costas e a outra em uma tomada de frente, como se Bergman quisesse sugerir que ambas as mulheres falam, embora se utilize de apenas uma como veículo. Ao final da seqüência tem-se a espantosa montagem dos lados mais feios do rosto de cada uma das atrizes, o que nos faz perguntar, ou, ainda mais, concluir, que são e mesma pessoa.

Interessante notar que é justamente no ponto mais excessivo de fala e, portanto, de aparência, que se desvela o ser do filme, por assim dizer. E, além, percebe-se que mesmo em sua tentativa silenciosa de ser, Elizabet Vogler fracassa em sua alma de eterna atriz e portanto artista aparente, o que já fora previsto no veredicto da médica. Contudo, podemos concluir que assim como o excesso de fala (aparência) desvela o ser do filme, o silêncio (outrora ser) é por sua vez aparência, e a fala, como aparência que é, pode desvelar o ser. Assim, podemos pensar que só é possível chegar ao ser através da aparência (como se houvesse outra maneira), e que este não pode nem se destituir nunca daquela.